segunda-feira, novembro 24

Chuvas


Chove há cinqüenta e três dias. E não é garoa não, é água desabando sobre o mundo. Entre sexta e domingo só faltou chover rã. Os mais crentes reuniram-se em mutirão e trabalharam incansáveis em um transmissor de ondas curtas para contatar São Pedro. E outros, mais crentes e apocalípticos, colocaram as mulheres na reza e foram para o mato cortar madeira de modo a construir uma arca.
Entende-se o desespero. O normal seria cair cerca de cento e trinta milímetros de chuva em trinta dias. Despencou duzentos e dez em dois. Isso sem falar do que já se precipitou nos últimos dois meses. Quem for bom com os números que se arrisque nos cálculos. Só não nos conte o resultado para não causar histeria.
Ninguém mais sabe pra onde correr. Se ficar ela molha, se correr encharca. Estamos no final de novembro e fiquei três dias com a lareira acessa. Em novembro brasa na sala de estar, dá para acreditar? Não é pelo frio, mas para secar roupa. Com uma guria de sete anos e outra com um mês – que me atocharam que ia nascer no verão e ia poder ficar só de fralda na varanda, a coisa fica difícil. É chuva demais. As ruas estão alagadas e intransitáveis, o pátio enlameado, e tem sapato que não acaba mais na área de serviço. Mas pena mesmo tenho da vizinha que mora num quarto com cozinha e goteiras. O cara do telhado esteve ali, subiu, deu de muito esperto, e quando foi embora além de cobrar pelo serviço deixou mais meia dúzia de telhas quebradas.
Mas quem dera os problemas de boa parte dos catarinenses se resumissem a roupas, sapatos nas soleiras e goteiras. Já passa de cinqüenta mil o número de desalojados e de sessenta e cinco o de mortos. Mais de trinta pessoas estão desaparecidas. Morros inteiros estão se deslocando sobre as estradas. Três das principais rodovias do estado estão bloqueadas, incluído a 101. Fora as artérias de menor porte que fazem a ligação entre as cidades. Sete municípios estão completamente isolados com a queda de pontes e barreiras. Ninguém sai, ninguém entra, ao menos enquanto não chegam os helicópteros. Os rios estão invadindo não só o que foram um dia suas áreas de alagamento, ocupadas com o crescimento da região. Estão indo além, varrendo tudo em frente. O Itajaí-Açu, velho conhecido pelos estragos que já causou no passado, principalmente a Blumenau em 1983, voltou a rugir. Casas, prédios, ruas, bairros inteiros estão sob suas águas barrentas. Mães choram filhos soterrados. Pais olham para as águas com os lábios secos.
Milhares de pessoas estão sem água potável, luz, gás, morada. Centenas de escolas e creches estão fechadas. Hospitais transferem enfermos em vez de recebê-los. Correm também o risco de serem engolidos por avalanches de lama. Lojas, fábricas, serviços – o que não está parado funciona precariamente.
E o pior é que pode piorar. Até quarta, embora em menor escala, o aguaceiro persiste impedindo os trabalhos de liberação das estradas e o início da reconstrução de dias melhores.

Foto: Glaicon Covre/Diário Catarinense/Ag

sábado, novembro 15

Engrenagem


Varre, lava, estende.
Limpa, bate, varre, lava, estende.
Limpa o quarto, limpa a sala, limpa a cozinha, limpa o banheiro.
Limpa a varanda, limpa a garagem, limpa a terra, limpa o céu - limpa.


Sabão, sapólio, detergente, desinfetante, amaciante, lustra móveis, cloro, corrosivos.
Limpa, limpa tudo.

Pano para o chão, pano para o pó, pano para a louça, pano para a pia, pano para o tanque. Pano de limpar patente. Pano para a casa, e um pano para fora de casa.
Varre o chão, varre o pátio. Varre o canto escondido pelos livros jogados.
Lava a área, lava a roupa, pendura a meia encardida pelo calo.
Lava, estende, sacode, lava.

Arrebenta, arrebenta.
Arrebenta o chuveiro. Arrebenta a torneira.
Estoura o cano, o registro, o portão, as treliças da porta de serviço.
Estoura a fossa, estoura o ralo, o sifão, a bancada da pia do lavabo.

Estilhaça o vidro, estilhaça o prato, estilhaça a xícara, estilhaça o copo.
Quebra o vaso, a janela, a floreira.
Quebra a telha, quebra a calha, quebra a caixa.
Estilhaça, fraciona – alquebra.

Parte-se, parte-se.
A cerca, a mangueira, o registro, a torneira.
Fura o pé, fura a mão, o pneu, o tonel, a borracha das tiras dos chinelos.
Fura o saco preto preto do lixo.

Vasa, escapa, infiltra, cede, cai – desencaixa.
O vitral, a maçaneta, o trinco, a tampa, a rosca, o forro, o piso.

Lasca, desfia, desbota, descasca, descostura, desencapa.
Amarrota, enferruja, mofa.
Fadiga.

Prende, bate, atarraxa.
Atarraxa o parafuso, o gancho, o pino.
Atarraxa o pino do suporte do pé da banheira.

Martela o prego, a taxinha, o percevejo, a joaninha.
Prende a prateleira, o roda-pé, a ventarola.
Prende a saboneteira, o toalheiro, a lixeira.
Prende a alça do fio do mosqueteiro na cabeça do prego na madeira.

Pendura a máscara, a cerâmica, a foto, o móbile, o espelho, a bandeira.
Pendura o gato, o bêbado, o tropeiro, a caricatura, a santa, o cubano.
A pirogravura do cavalo no couro de borrego.
Pendura o quadro das mulheres nuas no mezanino da sala longe do fogo da lareira.

Distribui, reorganiza, espalha.
Espalha as velas de cera verde e rosa por cima dos balcões e jardineiras.
Põe em seu lugar a moça, o pé grande, o lampião, a galinha, o cafetão, a prostituta –
a garrafa de pisco e a cuia para erva de paus de sorver tardinheira.

Descansa.
Descansa a renda alvejada, quarada, esbranquiçada.
Descansa os dedos, as unhas, a pele ressecada.

domingo, novembro 2

Finados


Esse negócio de bater as botas, a caçoleta... Esticar as canelas, o molambo. Dar a lonca, passar desta para melhor, finar, morrer – a coisa toda da morte, daquela morte morrida, conheci pequeno. Em uma manhã de páscoa garoada o Bongo não levantou do gramado. Era um animal pra lá de bom. Acompanhava-me onde fosse. Brincava com quem devia, vigiava a retaguarda das esquinas, e mostrava os dentes aos malevos na intenção. Ouvi pela janela meus pais dando um rumo pro corpo. Pouco depois, quando saí pela porta, o pátio tinha perdido a cor. Anos depois vi morrer meu pato por descolamento da nuca. O malhadinho revirava a cabeça, retorcia o corpo tentando assentar a cachola no pescoço. Não conseguiu. Homicídio culposo. O assassino? Meu próprio irmão. O guri tentou ensinar o patinho a mergulhar no tanque cheio de sabão em pó com técnica duvidosa. Morreu em meus braços. O pai mandou o piá dar o dele para mim. Não quis. Algumas coisas não são substituíveis. O criminoso pegou vinte e quatro horas no quarto - saiu sob condicional de não chegar a menos de dez metros dos outros animais por um mês.
Tempos depois, já com uma certa intimidade com a foice da noite, resolvi praticar um pouco. Brincar de poder sobre a vida e a morte. Comecei matando camundongos a vassouradas e tiros de chumbinho. Mais refinado e flertando com o sadismo, repensei os métodos e passei a caçar ratazanas. Prendia os medonhos em uma gaiola, botava no tanque, abria a torneira. O desespero era tamanho. Os olhos esbugalhavam, das gargantas vinham silvos, das fuças brotava espuma. Os bichos mordiam o arame da gaiola e atiravam-se para riba de maneiras a escapar do martírio. Chegava a dar medo das feras desencarnadas e do cheiro de morte na lavanderia. Fiquei meio abochornado com o suplício dos nojentos e parei com aquilo. Vá lá que eram ratos, mas até para dar fim a essas pestes há que se ter limite.
Mas foi quando resolvi abrir meu primeiro mal fadado negócio criando codornas, é que me tornei homem de chacina.. Disseram-me que as pardinhas eram boas de sacanagem, e com matrizes de estirpe, num instante teria centenas delas. Só esqueceram de avisar para os machos. Os meus eram uns baita frouxos. Olhavam para as fêmeas e nada. Já as meninas, por assim dizer, para expulsar um mísero ovinho era uma trabalheira.
Depois de um mês masturbando “codorno” para que os testículos não empedrassem, e chuleando ovo, dei o ultimato: sem foda e cloacas produzindo, o panelão de ferro ia baixar do sótão. Promessa feita e preguiça entabulada dei de mão no Dona Benta, preguei dois cravos num toco sólido, e deitei fio no facão de poda. Na ausência das práticas, num golpe errado decepei metade do rosto da primeira desaventurada. Num vôo macabro a bicha foi estourar no peito de minha mãe que vinha pela porta. As companheiras amontoadas numa gaiola eram pura inquietude. Precisei de cinco horas de fogo brando para amaciar a carne das danadas.
Depois disso ainda vi esmarrir meu coelho de olhos vermelhos, o Campari. Morreu na boca do Ciborg, cachorrão brabo, guarda da casa. Estive também na definhação do Haroldo e da Giselda, marrecas que criava. E de mais um monte de pintos, passarinhos gatos e de pequenos quelônios fazendo às vezes de chicle nas mandíbulas da guaipecada. Ovelhas, leitões, bezerros e algumas caças, ajudei a dependurar em galho alto – todos carneados em virtude da boa mesa.
Mas nesse negócio todo, nada me intrigava mais que os garnisés dos despachos nas encruzilhadas. Admirava os galináceos estrebuchados cheio de respeito aos rituais dos sacrifícios. Como não sou de ferro saboreava uma balinha de mel da oferenda enquanto analisava a carcaça e amassava inquieto o celofane vermelho. Enfim, sempre achei a morte algo natural, inerente à vida. Se ela for com propósito, método e fé, melhor ainda. Chocado acho que só fiquei uma vez quando vi uma camiliana sem hábito ensacar uma ninhada de gatos para depois ficar arremessando a carga violentamente contra uma árvore repetidamente.

De gente morrida não gosto de falar, basta dizer que já esticaram os pelegos no descanso todos os meus avós. Sinto mais falta de um do que outro, conforme o dia e a situação. E que já vi por força de ofício cadáveres esmagados no asfalto, esburacados por bala ou faca em bancadas de necrotérios. Sem falar nas crianças mortas por infestação de bicho de pé.
De gente mesmo só posso escrever de mim por mais eu. É que da adolescência em diante passei a morrer também. Um pouco a cada dia. Um tantinho por cada amor perdido, por cada saudade suspensa no tempo. Ademais, em um por um dos meus rasgões as feridas latejam, e nem cromo ou mertiolato, nem sutura ou hipoglós, reza braba, simpatia ou macumba, são capazes de fechá-las. E isso nem quero. Se caminho para morte, que seja então com meus cancros. Lá no fim, até do pus deve verter algo de bom.

sexta-feira, outubro 31

Caminhada


O dia nasceu cambaleando, bêbedo, turvo, um borrão nas retinas. A noite não teve sono ou descanso. Foi de passo em passo, tic-tac de pêndulo, caminhando para manhã. Fiquei de lá pra cá comendo as léguas dos corredores e dos paralelepípedos espelhados pela chuva ranheta, teimosa, lavanderia do mundo. Tive outra noite longa igual, já vai tempo... Nem bem a luz despontou e a passarada se anunciava nos quintais dos arredores. As pedras das bruxas, benzedeiras e parteiras, lá fincadas na maré. Tentei imaginar a soldadesca nos fortes, as naus ancoradas na baía, os candeeiros no casario queimando o óleo das francas mortas na Armação - os renegados sentando vida ao oeste do Atlântico.
Deve ter sido difícil para Nina adentrar pros lados de cá. Escorregar pela senda estreita e por demais apertada para cair na ponta de dedos estranhos. Ser jogada às toalhas, metais, luzes, sons - ao frio de um lugar em que já não cabia. Impossível alcançar suas paredes, reconhecer suas cores, imantar-se na perspectiva de um chão. Sua única e plausível saída foi voltar a encolher-se, colocar a mãozinha mais uma vez junto à cabeça como fez por meses na segurança de seu chateau materno.
Mas encolher-se resolve pouco. Abrir os olhos pode ser um suplício! Mantê-los focados, seguros em suas órbitas requereu, e ainda requer, um esforço hercúleo. É tudo muito grande, não há para onde mirar. Se a bichinha senta foco em alguma coisa, outra logo passa por detrás e lhe rouba a atenção. Quando enfim consegue ajustar a vista, se lá tinha alguma coisa, ali já não mais está. É tudo uma bruta confusão. Se as coisas vão alvoroçadas demais, melhor fechar os olhos e dormir - simples assim. Frente a esse mundo destrambelhado, ao menos por enquanto, cerrar as pálpebras resolve. Oxalá nunca lhe falte a perspicácia.
Pena um piscar não dar jeito em tudo. Para engrenar o estômago e os intestinos, por exemplo, as catracas flertam com a dor. Estavam lá os órgãozinhos novinhos em folha, numa boa, só no amniótico. E agora, sem mais nem menos, por conta de um leitinho, são convocados de supetão ao trabalho. Ora bolas, todo motor precisa ser amaciado, não é no tranco que a coisa funciona. Quereria assim eu, o ignoto. Ora, pois é no solavanco que tudo desce. Espreme pra lá, repuxa pra cá. Contorce, esperneia, geme, chora. Em fincadas lhe afronta a cólica, em inchaço lhe desafia o ar que se nega ao arroto. E remoendo a incomodação, o desconforto já vai alinhando na face as primeiras rugas. E os gritos fincam os alicerces dos calos da garganta. E aos pulsos em tensão, resta no ensejo fortalecer os músculos para quando chegar a hora de cerrá-los com fúria invocando xamãs e conquistas.
Por hora, apesar das duas semanas, a pequerrucha vai mostrando fibra. Já começa a segurar a cabeça sobre o pescoço, e vira o corpo quando bem entende no carrinho. A médica diz que ela deveria estar quieta, ainda molenga. Ah, moleza lá o quê! A guria ganhou o dobro do peso previsto, e daqui a pouco começa a andar, depois a correr e dependurar-se. Árvore pelo bairro é que não falta. Logo, logo, vai ter puxão de rabo, orelha, e tapão sobrando pra cachorrada. Quando as tripas se ajeitarem serão outros ais, muitos outros ais. Que venham. A garota tem bom sangue, canelas fortes, dedos longos, e olhos para o mundo.

sexta-feira, outubro 17

NINA FRECHIANI LEITE ROST


Meus queridos e parcos leitores - hoje, dia dezessete de outubro de 2008, seis e vinte da manhã pelo horário de verão em Florianópolis, sob chuva fina e intensa veio ao mundo Nina Frechiani Leite Rost. Mãe e filha trabalharam por três longas horas por um parto natural. Três quilos e meio e 47 centímetros de gente. A vida irradia luz na manhã cinza e fria dos ilhéus. Os olhos de mel da mana Cora estão sorrindo. Amanhã estaremos todos em casa sob o céu do Campeche.

terça-feira, outubro 14

Sapatinho


Meus caros e parcos leitores, a vaca foi pro brejo - querem exterminar nossas crianças. Bem verdade, já faz tempão. Apresentadoras de TV ditando moda e mães loucas vestindo crianças com roupas que mulher nenhuma deveria usar em público não é novidade. Convenhamos. Shortinhos de malha adentrando hemisférios combinados com botinhas, tamancas, e blusas com decotes no umbigo, não dá. Se usassem entre quatro paredes, tudo bem. Mas aí, não. O divertimento passa ao largo. Também não dançam, descontraem, mal acocoram. Normalmente precisa-se de um macaco hidráulico para descolar os joelhos das malandrinhas entupidas de vodka. Em vez de orgasmos, lágrimas de culpa, insegurança e jorros de vômito cor de menta.
Quando vejo guriazinhas que mal aprenderam a caminhar andando desajeitadas sobre tamancos, tenho vontade de estrangular o pai e a mãe. Criança usa sandália, fantasia de sininho, chapeuzinho vermelho, princesa. Usa macacão com tiras de couro costuradas nos joelhos para proteger a pele dos raspões e das quedas. Usa camiseta, que de preferência chega ao fim do dia implorando por água e sabão.
Pelo amor de Deus, são crianças. Para aprender a equilibrarem-se são necessárias árvores, cordas, amarelinhas e elásticos. As pequeninas não aprenderam nem a correr sem tropeçar nos próprios pés e as loucas das mães já fazem delas mulherzinhas. Haja ortopedista, psicólogo e remédio controlado para dar jeito nas adolescentes que virão. Vai ser tanto do grilo nas cacholas que inseticida nenhum se arvorará a dar jeito. E pode ser ainda pior. Imaginem se os grilos extinguirem-se. Aí restará apenas um vazio filosófico lançando-as a um mundo de mentirinha onde se premia o tamanho das nádegas e o furo que vem no meio. Mais os peitos, panturrilhas e a altura do salto.
Agora alguns canais de televisão e a indústria do entretenimento fazem novas investidas. A Disney, por exemplo, está pegando pesado na programação para adolescentes. Mas as produções são tão abobalhadas para o público alvo que quem acaba assistindo, se o pai e a mãe permitirem, são as crianças entre sete e dez anos. E lá vai a vida como um índice - as etapas abreviando-se, a luz da brincadeira se extinguindo. Ora, pois, vale o lembrete, e qualquer antropólogo ou sociólogo de botequim disso sabe: o dia que não brincarmos mais, será também o dia em que pararemos de evoluir. Ludicidade, curiosidade, descoberta e evolução são frutas do mesmo pé, não se apartam. E se a primeira faltar, as irmãs nas ramas abandonadas negam-se a madurar.
Se a imagem que nos dão do mundo exige pressa, está na hora de nós, adultos, relembrarmos quanto valem os passos já fincados.
Quanto às nossas crianças? Que brinquem em paz.

segunda-feira, outubro 6

Minhocão


Viajar no tempo sempre foi uma coisa que tive vontade de fazer. E o que parecia impossível agora está bem perto de tornar-se factível. Isso graças a alguns astrofísicos. Eles trabalham com a hipótese de existir no hiper-espaço umas tais de minhocas cósmicas. Explico: seriam, segundo esses caras geniais, ou que andam tomando ácido além da conta, atalhos para sistemas galácticos além da velocidade da luz. E mais, como o tempo é relativo, e isso Einstein já sabia, e o GPS do teu carro também, essas trilhas espaciais poderiam fornecer o bilhete de ida e volta através das eras. Imagina só, viajar para o passado da humanidade? Eu, pelo menos, ia me sentir o cara. Putz, é só pegar o minhocão no ponto do Campeche e desembocar num surubão com o Calígula. E não ia ser o máximo dar um pulinho lá pros tempos das grutas e Pitecos? Dava até para ficar sabendo se os cromanhons comeram as neandertais, ou não. Eu acho que comeram. Tive uma colega na quarta série cujas características físicas não deixam dúvidas. Mas queria mesmo era voltar ao mundo mediterrâneo quando, conversa vai conversa vem, sempre se acabava em pólis e Afrodites. Não que tenha a intenção de entrar numas de peripatetismos, cavernas e reflexos duvidosos. A idéia passa longe de tanta nobreza. Gostaria era saber se Helena era tão gostosa para justificar a nicada suicida do Páris, ou se o cara tomou vinho ruim numa cumbuca mal lavada e morreu abraçado com um dragão. Se Helena não era lá essas coisas, depois de ferrar com o Heitor e a troionada toda, como último pedido o bonitão deve ter implorado pro Menê mandar os historiadores forjarem a fama da mulher. Que por sua vez não deve ter achado nada ruim. Afinal, cruzar o mar naqueles barquinhos e construir o bruta cavalão por uma bagaça haveria de pegar muito mal.
Legal também era dar um pulinho pras bandas de cá. Seria divertido comer coxinha frita dividindo o penico com D. João. O arvoredo todo, a lagoa atrás, a passarinhada - e a Carla Camurati espiando a gente de um arbusto. Só ia faltar o Cristo a pegar ar na sovaqueira em cima do monte e a Claudia Ohana discursando contra a gilette e tomando porrada do Peréio. Ops, tô empolgado e trocando as bolas. Essa era a Cissa. Mas já que estou viajando mesmo, ia aproveitar o gancho do segundo turno e ver de perto o Gabeira - pernões abertos, miss tanguinha crochê. Viva nós – ere merda de minhocão bom esse por descobrirem!
Quando batesse o cansaço, voltava pro agora e ia curtir férias num resort no Pacífico. Sim, por que a essas alturas eu ia ter grana pra cassete. Um highlander intergaláctico poderia se dar a esse luxo, não acham?
Não obstante, iria voltar ao passado para arrumar umas coisinhas. Ia dar uma chegada em Portugal, Itália, Espanha. Levaria um monte de extintor só pra esguichar espuma na bunda da inquisição, que de santa não tinha nem a intenção. Vai queimar fulano, fazer torradinha do cicrano (?), tome espuma no rabo. E o Tomás de Torquemada? Esse além da espuma dava para mandar empalar.
Pois bueno, assim que confirmarem a existência dos minhocões cósmicos, parcelo um bilhete no cartão. Se bem que só vão aceitar pagamento na bucha e em dinheiro vivo. Do contrário o calote vai ser grande. O sujeito compra a passagem, desce perto do primeiro buraco negro, e baldeia-se não se sabe para onde. Nunca mais cobram o sete um.



Imagem - Telescópio Hubble

quinta-feira, outubro 2

Endereço


Esses tempos botei no pau uma empresa que perdeu um negócio que eu tinha. Não posso revelar detalhes porque tudo corre em segredo de justiça. Se abrir o verbo, acabo comprometendo os trâmites processuais, portanto, lábios cerzidos. O que a boca fala o cu padece, já dizia meu avô Coelho. Mas o caso é mais ou menos assim: procurei os meus direitos por ter aprendido quando piazito que, se a gente perde ou estraga o que não é nosso, paga ou arranja coisa igual. Ora bolas, bem recordo que dei minha girafa pro vizinho em troca do rinoceronte de estimação dele depois do sumiço do bicho na caixa de areia. Também lembro de passar cal no muro da casa de um velho ranzinza depois de tê-lo sujado com argila. O bobalhão furava todas as bolas que caíam no seu pátio. Mas fazer o quê? Estraguei (?), tive de arrumar. Enfim, fui criado no perdeu, pagou.
Pois a dona juíza, depois de um ano, mandou me chamar. Me armei num traje alinhado, fiz barba, lambi os sapatos na graxa, e me toquei para a comarca achando que a autoridade ia bater o martelo - proferir sentença. Mas qual o quê! A magistrada só queria saber onde descanso a carcaça. Coloquei-me de pronto para todo e qualquer esclarecimento, obviamente, mas precisam ver só a trabalheira que deu. Para provar que moro onde moro perdi quase um dia inteiro. Primeiro sentei a bunda e escrevi meu nome, endereço, e depois todos os números que ao longo da vida calharam de me dar.
Escrevinhação impressa me toquei atrás das testemunhas. Coisa de louco. Não arranjá-las, mas sim explicar a cada uma a razão do ofício.
- Mas só agora ela te chama?
- Pois é...
- Mas não estava tudo lá na papelada do processo?
- Pois é...
- Mas que coisa, hein?
- Pois é...
- E o Gilmar... O que foi aquilo? E o advogado do outro agora é assessor jurídico da comissão organizadora da copa do mundo. Ainda por cima, é namorado da irmã do falcatrua. Onde já se viu? Em que tempos vivemos...
- Pois então...
Com as assinaturas em mãos chega a melhor parte: a hora do cartório. Coisinha gozada esse negócio das escrivanias da justiça. Que é preciso que se registre até entendo, mas quando preciso ir lá para dizer que eu sou eu e não o outro, e ainda pagar por isso, fico meio desconfiado. Outro dia o verdureiro seu Anastácio me contou que precisou vender um terreno para pagar ao cartório uma dinheirama pesada. Só assim para conseguir herdar a casa que o falecido pai deixou.
- Mas, seu Anastácio, não era do teu pai?
- Pois é...
- Não era só passar a casa pro nome do senhor?
- Pois é...
- E teve que vender o terreninho para pagar o papel que diz isso?
- Pois então...
Não é de se ficar horrorizado?
Bom, mas fui eu pro tabelionato com um monte de coisas na mão. Contrato do aluguel, conta de luz, um depoimento do vizinho em K7, mais umas fotos minhas cortando a grama do pátio. O sovaco ia apertado, tamanha envelopada. Botei tudo em cima do balcão. A mocinha descartou as fotos e a fita e começou a contar as folhas.
- Vai dar um dinheirão.
- É?
- Tem muita assinatura para carimbar, reconhecer as firmas.
- Não fabrico nada, não. Nem empresa tenho.
- Vai um bocado de carimbo.
- Pois então começa a molhar a almofada, tá comigo o talão do banco. Aceita pré-datado?
Foi um baticum que vou lhes dizer... Quando achava que tinha acabado, a guria cochichava no ouvido de uma outra. A assistente então consultava os livrões e logo vinha com uns selos para colar. E dá-lhe mais carimbo. Acabado o serviço, ela foi até o fundo da sala e deu o calhamaço para chefe que assinou folha por folha. Contei vinte e seis carimbos e dezoito assinaturas. Tudo isso para a juíza saber que moro logo ali no Campeche.
Agora é esperar. Quem sabe lá por outubro do ano que vem ela manda me chamar de novo. Se assim fizer, de pronto presto os esclarecimentos.

Dom Quixote - Ilustração Gustave Doré

terça-feira, setembro 30

Malhada


Quando completei dezoito anos, como todo mundo que tem bolas entre as pernas, fui prestar contas a milicada. Andava meio perdido escrevendo uns poeminhas. Lendo sem entender bulhufas - Goethe, Alighieri, Verlaine, Rimbaud, Ginsberg. Se não fosse a farda teria de ser a Abissínia, trilhos, escravas brancas e ópio. Como me faltava coragem para barcos bêbados, resolvi sentar praça.
Soldado do segundo pelotão da segunda companhia do batalhão de infantaria motorizado. No mundo da caserna, soldado de infantaria é quem leva o ferro. A idéia é o combate corpo a corpo.
Quando veste a farda, o recruta primeiro se fode, depois se fode, e no fim, se fode mais um pouco. No mês de iniciação te enfiam no internato. Trinta dias para esquecer o mundo civil, gritavam os sargentos durante as vinte duas horas que permanecíamos acordados. A época era cascuda, e os novatos tinham de ser preparados rapidamente. Ano de eleição, a primeira em mais de duas décadas. Se os comunistas ensaiassem vôos mais altos talvez fossemos para as ruas. Ao menos era a esperança de algumas patentes.
- Vais votar em quem? - berrava o sargentão.
- No Freire, senhor.
- Milico não vota seu porco, infeliz. E esse aí é amigo do barbudo sem dedo?
- Não, senhor. É de outro partido, senhor.
-Acha que eu sou burro, guerreiro? A merda é a mesma, seu avermelhado, comunista. Tu és um bosta. Um filho de uma mãe perdida, e agora tu és meu, seu caganeira, remelento, carrapato de capivara.
E dê-lhe paulada no capacete. Flexões, agachamentos e giros num pé só no prédio da companhia.
Passei três meses limpando o mijador de cento e vinte pirocas, algumas tomadas por cancros, fimoses e sífilis, fora a catarreira. Ter respondido aquela maldita pergunta me trouxe o inferno. Foi quando comecei a aprender a sumir, ficar invisível, a desaparecer no meio do oliva e ressurgir só na hora certa.
No quartel diz-se que há somente duas maneiras de fazer as coisas: com gosto ou com raiva, mas sempre com energia. Optei pela raiva. Quando avançava contra turba imaginária fincava a baioneta nos rins dos subversivos e berrava o mais alto que podia. Quando mandava a foice contra o capinzal na limpa do pátio, não sobrava nada. Se fosse varrer, gastava a palha da vassoura, se fosse cantar, era o mais desafinado possível, mas o mais alto também. E se fosse marchar, não havia quilômetro, terreno, ou peso de equipamento que me derrubasse. Assim ganhei o respeito dos cabos, da sargentada, do oficialato, e o mais importantes, dos meus iguais.
Foi me valendo de disciplina e paciência, e da noção do que acontecia em minha volta, que me mantive longe da cadeia e depois das faxinas e trabalhos pesados.
Mas o que te mata mesmo lá dentro são as guardas. Ao longo de um ano prestei setenta serviços como vigia da pátria. Frio, chuva, geada, sol de rachar lábios e queimar retinas – madrugadas insones e dias lânguidos. Horas olhando para o nada com um fuzil na mão. E esse era o maior problema. O nada suscita idéias, inquietações. Alguns piravam, e com poder de fogo ao alcance do indicador. No quartel tem todo tipo de gente. Pobre e rico, analfabeto e letrado. Bandidos, cafajestes, homem forte e homem fraco.
Passei uma madrugada pisoteando os miolos de um infeliz que enfiou uma bala na cabeça dentro da guarita. A ferrugem do sangue do cara até hoje me incomoda o olfato. Em serviço não se brinca nem brincando. Um vacilo, uma bobagem, e podes acabar na cadeia por anos, e então, adeus vida civil. Por ter sacado o perigo, tinha para mim que pelo meu posto ninguém passava. Minha arma, ninguém roubava, e ficar absorto, nem nas piores calmarias.
Foi numa noite de julho, fria de renguear cusco, com a neblina baixa e densa engolindo o posto avançado, que os maricás estalaram no matagal.
- Alto lá, nem mais um passo.
Mas do mato, veio ainda mais barulho. Carreguei a câmara do FAL e liberei a trava de segurança.
- Alto, seu bosta. Se avançar leva fogo.
E nada do mato acalmar.
- Merda, merda, merda. Mil vezes caralho. Ai, ai, ai... Comigo não. Disse em sussurros para o nada, apavorado, branco de medo.
Se invadissem por ali e não fizesse nada, acabava na cadeia. Se abrisse fogo em vão, inquérito, dor de cabeça, incomodação. Que sinuca! Apertei o gatilho e a bala afundou na terra. Era a última advertência. Ouvi as sirenes do batalhão acionando o plano de defesa enquanto a barulheira nas macegas crescia em minha direção. Conseguia escutar os coturnos da guarda assumindo posições, mas meu reforço tardava.
- Não vai dar tempo, Foda-se.
Taratatá. Três tiros e um corpo tombou. Pelo barulho, um corpo enorme.
- Que é que esse gordo queria, porra! Matei o gordo, matei o gordo.
Das macegas veio o lamento e a agonia. De tão alto parecia um mugido.
- Mas é um mugido, é um mugido.
Quando tocaram o farol, lá se viu a malhada no chão. Pobre da vaquinha. A língua de fora, a respiração ofegante. A soldadesca pulava enlouquecida. Uns já puxavam a baioneta para tirar-lhe o couro, outros anteviam a carne na brasa.
- Alto lá, gritou o tenente. Deixem a vaca morrer em paz. Oh, Bráulio.
- Sim, senhor.
- Puxa a reza pra encomendar a alma. É bicho, “mas tem alma sob o couro”.

sexta-feira, setembro 26

Urutu-Cruzeiro


Quando nasceu Garibaldo, o pai foi logo dizendo:
- Esse há de dar nó em rabo de Cruzeiro.
A mãe não gostou da anunciação, lhe cheirou a mau presságio. Dona Ana tinha suas razões. Do início ao fim da gravidez sentia o guri inquieto além da conta. Mal o embrião havia tomado forma e o piá já fazia força para sair. No sétimo mês não deu mais para segurá-lo, estava grande demais a chutar as paredes da barriga. Nasceu no meio da manhã embaixo dos lençóis que quaravam no varal. Escorregou pelo meio das pernas da mãe e pronto, despencou no capim alto. Quando o pai chegou, Dona Ana já o tinha no colo, quatro quilos de criança de olhos arregalados olhando pro mundo. Seu Toribio cortou o cordão com a faca de castrar novilhos e caminhou até a lagoa. Quando o mergulhou nas águas o alarido da bicharada correu os água-pés, e pelos tocos secos das margens ouviram-se os guizos das cascavéis.
Cresceu numa ligeireza espantosa e tudo foi fazendo muito cedo. Levantou e caminhou rápido demais, correu atrás de tatu e deu pedrada nas saracuras rápido demais, armou arapuca e pelou lebres rápido demais. Aos cinco anos tosquiava ovelhas no tesourão e capava bezerro feito peão crescido; e já aos sete, cumpriu a profecia do pai dando o nó na sua primeira Urutu. Nem bem fazia seus onze anos e dos brejos da região era monarca. Conhecia cada alagado, a infinidade de canais que interligam lagoas e rios.
Aos quinze anos, diante dos olhos vermelhos de Dona Ana, cismou de construir um navio.
- Saio pelo mundo logo em breve, que a avó dê pé às rocas e aos teares e o vôzinho esquente os caldeirões e venha com o tanino. As velas hão de ser coloradas.
A mãe atarantada tentava lhe devolver a razão:
- Um navio, Garibaldo, tu vais para onde? No fim de cada lagoa vêm os campos, e por lá tu já ficas encalhado.
- Ponho rodas no casco, respondia, se o italiano fez, também posso, e o mar ganho logo adiante.
- Mas em que propósito, desesperava-se a mulher, tens um mundo aqui, e aos teus pés.
- Me vou para fincar bandeiras que pra lá dessas terras está tudo virado e reina a desordem.
- Tu precisas é de um termômetro que a febre já te enlouquece.
- Se o piá quer dar ordem ao mundo, que se vá - gritava seu Toribio em reprimenda à mulher.
Um ano mais tarde, quando a madeira bateu na água, assim como no dia que chegou ao mundo, o alarido se fez mais uma vez. As velas estufaram-se aos ventos do sul e a proa quebrou o sossego da lambarizada. À frente, a Ururu-Cruzeiro talhada em carranca, mirando o norte pôs-se em alerta e esticou a língua no farejo.
Garibaldo ganhou as águas e com rodas improváveis atreladas ao casco, também os campos.
“Coloco barrigueira nessas mulas e quebro-lhes as queixadas com um bom freio de metal. Aí quero só ver se continuam essa judiação sem fim. Basta de piá ranhento e guriazinha de pé no chão. Chega de taipa como parede e morada sem reboco. Na mesa de todos outros há de ter muita lingüiça, carreteiro, trigo e feijão. Quero toda a gente estudada, sabida das letras, economias, leis e ciências”, ia ele assim tagarelando em solilóquios com a noite e as imensidões.
Três meses depois de sua partida avistou o farol, a saída para o mar. Hasteou no mastro alto sua bandeira e afagou a Urutu, mas no primeiro bafejo da maresia o mundo escureceu. O vento salobro entrou por suas entranhas e em sal o transformou. No convés, um punhado branco no sopro logo foi-se. Longe, lá na beira da lagoa, Dona Ana olhava quieta os peixinhos na linha da margem:
- Ai, meu Pai... Quem mais sabe, além de nós, que lambari não se cria em marola salgada.

segunda-feira, setembro 22

O rancho


Lá pros lados da Armação, no pé do morro da praia do Matadeiro, tem um ranchinho taipas tortas escondido entre as figueiras. Dona Lavínia toca o sítio com esforço, ela e as quatro filhas que foi adotando toda vez que as irmãs do sagrado coração apontavam na trilha com mais uma enjeitadinha - hoje, já todas mulheres moças que respondem pela assinatura que desenham com dificuldade em qualquer folha de papel que lhes alcança a mãe. Cega confiança em agradecimento à mulher, que mesmo com o útero extirpado jorrava leite pelas tetas a cada criança que lhe atiravam ao colo.
Plantam e criam por lá um bocado de tudo. Porcos, galinhas, codornas, patos e marrecas. Duas mulas para ajudar a revolver a terra, uma vaquinha bem boa de úbere, e três curiós que chafurdam alpistes e alegram os dias. Semeiam cebolinhas, repolhos, couves, tomates, cenouras, beterrabas e o que mais a terra já cansada permitir que cresça. Distribuem as verduras e leguminosas nos mercadinhos da região. Tudo muito orgânico como hoje se quer. Assim, em muitos jeitos, vão alinhando o caminhar. De segunda a quinta-feira, os dias passam entre enxadas, pás, arados e sementarias. Dá gosto de ver as gurias no mexe-mexe dos canteiros. Quando chega a sexta, dona Lavínia suspende a lida e o galo canta sem serventia. As moças dormem até o sol bater no alto da capelinha no monte das pedras. Enquanto a manhã vai andando, a manca toda banguela, que um dia apareceu não se sabe de onde e acabou ficando, mata uma galinha bem gorda e na lenha reforça o caldo do almoço.
A tarde se perde entre banhos e cheiros. Dia de navalha nos sovacos e virilhas, pinças e escovas. Oito pernas bem lisinhas que a água do poço amacia. Enquanto as bichinhas do barro se transformam e perdem-se entre talcos e pompons, a velha vai ajeitando o terreiro. Varre, limpa, enterra o folharedo pra lá da pocilga. Puxa as mesas e cadeiras de dentro - dá ordens dali mais acolá. Grita que a manca se mexa, pois a tarde já vai caindo. Passa revista nas bebidas e rapapés, futrica os caixotes atrás dos copos plásticos, sacode conhaques e canas de modo a memorizar o nível de cada garrafa. A renga puxa os fios, emenda as gambiarras, e entre meia dúzia de choques que a mantêm em alerta pendura as luminárias na figueira grande e já confere em dois pulos a vitrola e vinis. Com a noite enluarada, sete e meia já passadas, atrás do morro da Matadeiro, acende-se a lamparina colorada.
Galhofas, pés dançantes e risadas. Sob a figueira, ciscando no chão batido, cada um dos convivas há muito conhecidos cortejam as preferências. Já avançam todos nos tremelicos e papadas. Batem chapas em céus de boca, salivam e se lambem ao ver as guriazinhas tão tenras. Carne durinha, tetinhas empinadas, pelinhos perfumosos. “Ah, que graça e benção nos dá dona Lavínia”, mascam entre dentes e esfregar de mãos os orelhudos. Mas a velha, que de besta passa longe, só permite além da dança algumas mãos escorregadias e arretinhos fugidios sobre calcinholas. Enquanto a baba dá brilho às queixadas, a manca se arrasta a esturricar os copos. A alcoviteira, por sua vez, passa em ronda e recomenda moderação. É o sinal para que remexam os bolsos. Nota sobre nota em toda mesa por um bem comum. Se a quantia for satisfatória, ela manda vir a Ritinha por nome da satisfação. A branquelinha de natureza quieta, que dos lábios só escapam murmúrios, ilumina o terreiro. Ausente nas culpas, sem ter em vida batismo, página cristã, circuncisões ou gritos a Javeh, é o próprio orvalho umedecendo o arvoredo. Os narigudos juram pela vida e verrugas um momento a mais de mocidade. Querem-se mortos por um fluxo novo de sangue, desfalecem no vislumbre da carne que goza com as raízes da figueira. Pulam das cadeiras, apertam os bolsões das pálpebras, esfregam as varizes, em ais desconjuram os ossos carcomidos. Acabada a dança, lamentam os sacos rendidos e o trote da Ritinha lá sumindo na escuridão.
Estão exaustos, trôpegos, e vão pela trilha com o sol incomodando as vistas - Oxalá guarde a velha, a manca e as guriazinhas que ainda lhes permitem sonhar. Na segunda, pés e argila. E que a terra frutifique muitas folhagenzinhas, raízes e jacarandás.

quinta-feira, setembro 18

Serestas










Carro bom é o Doginho Polara. Poucos ainda rodam por aí. Painel de madeira, bancos estofados, câmbio longo, macio feito seda. Quarta marcha que estica dos trinta aos cem na brincadeira. E pára por aí mesmo, que Doginho é carro pra conforto e não velocidade. Foi num desses que aprendi a dirigir.
Faltou canha na festa em homenagem ao nosso deputado e o cantor e anfitrião mandou buscar mais trago.
- Sabes dirigir?
- Sei... Pero no mucho.
- Então te toca pro bolicho e pega umas rolhas com butiás, alfazemas e alecrins. A chave tá pendurada na gaita.
Não me assombrei. Tinha uns quinze anos e já era hora de botar cabresto nos motorizados.
Daquela noite em diante o Dodge virou parceiro. Noitadas de serestas e caça, eu mais o filho do cantor, um guitarreiro de mão cheia. Vez que outra o bichinho dava uma encrencada. Rompia uma correia, afrouxava uns parafusos, ou parava por falta de gasosa. Com cinco cruzeiros no tanque não havia milagre.
Mas quando engasgava dava boa causa. O carrinho conspirava por nós. Ficar sem condução rendia boas histórias, elevadas ao cubo é claro, para descolar uma Kit com sofá-cama e um banheiro com calcinhas dependuradas nas torneiras. Raramente comíamos alguém, não podíamos trair a confiança. O barato era dormir juntinho – e quem sabe(?), a semente estava no campo e outras noites viriam. E vieram com muita seresta. Até debaixo de janela de hospital chegamos a cantarolar. Obviamente para dar explicações ao delegado logo depois. Pela graça eu conhecia o homem, chegado a uma farra e freqüentador de tablados de centros de tradições. No plantão da autoridade, um branquinha de Santo Antonio da Patrulha e acordes missioneiros. Quando fomos embora recomendou ausência de cantoria a menos de mil metros de asilos, hospitais e casas de repouso. Nos bairros, liberou as serenatas e deu ordem para que não fôssemos incomodados.
Nosso costume era acabar a noite com um bom carreteiro para recompor a ossada e ganhar o dia. Se não tinha carne, era charque, se faltasse o charque era com bonzo e café forte - depois, óculos escuros e trabalho. Quem andava sem rabiscos na carteira ia cumprir os bicos compromissados. Os que nem biscates tinham solidarizavam-se. E como isso era levado muito a sério, ou ficava em vigília, ou ia ajudar o biscateiro com o serviço mais leve. Um dos nossos era habilidoso por demais. Entendia, assim mais ou menos, de elétrica, hidráulica, marcenaria, jardinagem, limpeza de calhas, higienização de canil... Enfim, coisas de toda ordem. Quem ia ajudá-lo ficava ao lado feito um dois de paus. Mãos nos bolsos, dedões e calcanhares disputando a base do chão, pálpebras semi-cerzidas de olho pequeno na empregada.
-Passa o jacaré.
-Tó.
-Isso é um alicate, cacete.
-Usa isso mesmo, porra.
-Não quer sair.
-Puxa com força.
-E se estourar o cano?
-Tem um rodo ali no canto.
-Então agarra as minhas pernas.
-Eu não!
-Pega, caralho.
-Pra que, seu bosta?
-Tô entalado.
-Sai daí de uma vez e dá de mão no cheque, amanhã tu terminas.
-A junta ficou solta, vai dar merda.
-Se reclamarem tu diz que foi a empregada que bateu quando foi limpar.
-Simbora.
Raramente participava dessas pequenas aventuras. Meu trabalho era outro. Na época, eu vendia armas de caça, revólveres, pistolas, galochas, armadilhas, anzóis e tudo mais que fosse imprescindível para um bom acampamento. As armas tinham nota e autorização do comissário meu amigo, que fique claro. A única irregularidade era a grana por baixo para o escrivão acelerar a emissão de registros e portes.
Para ficar acordado botava semente de guaraná debaixo da língua e uma cuspideira no chão. Encostava no balcão dos cartuchos e ficava de butuca nos peitos da Terezinha. Guaraná e peitões, receita boa para manter-se em pé.
Quando se achegava o arrebol, começava tudo de novo.
A viola com o Sérgio, o Lauro no vocal, o Agenor no coro e no deslocamento das bebidas, e eu no bongô. O Lauro não cantava nada, a gente dava graças a deus se ele não vomitasse entre um verso e outro, o Agenor normalmente derramava a canha nas congas e meias carpins roxas que não tirava nem para trepar, o que fazia bem pouco por conta de um bigode indecente, e é claro, das congas brancas com cadarço pretos que ele amarrava na canela. Tempos depois ele foi banido dos saraus quando se descobriu que gostava de coçar o cu com as escovas de dente das anfitriãs. Já eu não sabia sequer esticar o coro do meu instrumento, quem diria bater alguma coisa. Mas fazia de conta muito bem e com cuidado para não atrapalhar o Sérgio que era o único que sabia o que estava fazendo. Quando a cantoria era mais reservada e intimista, minha modéstia impedia que tocasse e gentilmente cedia o instrumento para alguém pagar o mico. Ficava com as declamações.
Acho que envelheci uns dez anos em dois com o giro alto daqueles dias. Quando fiz dezoito anos acabei no quartel. Nas noites de guarita continuei com o guaraná, mas em silêncio e sem peitões, meio chateado vendo o doginho polara passar na avenida em busca de tertúlia.

quinta-feira, setembro 11

Oftalmologista


Daqui a alguns dias completo quase quarenta anos. Apesar de ter sido um desportista, atacante de ponta e campeão, levo uma vida sedentária com muitos cigarros e alguma bebida. Na alimentação, pelo menos sem exames e com muito brócolis, vou levando. O caso é que não dá para ficar protelando, bate à porta a hora de abrir a porteira. Deixar adentrar por onde a vida inteira só saiu – à exceção de uma lavagem por conta de uma tarde comendo goiaba, admito. Para me preparar psicologicamente ando estudando sobre o assunto e também marquei hora na oftalmologista. Se for para fuçar em algum olho, acho sensato que seja primeiro nos de cima. Só depois vou procurar uma médica que entenda de próstata e leve jeito no trato com rabistecos. Isso já decidi, vai ser doutora. É coisa minha, sabe? Sei lá, pode parecer bobagem, mas com garotas fico mais à vontade, menos na defensiva. Para espantar esse medo, consultar a literatura médica ajuda muito. Já descobri, por exemplo, que não há a menor necessidade de ficar de quatro, basta deitar de ladinho. Outra coisa a atentar-se é fazer um histórico da vida pessoal da algoz. Não custa nada consultar a manicura da mulher. Vai que ela esteja num mau momento. Se estiver passando por uma separação traumática, por exemplo, a enterrada é certa. Não se dá nem o trabalho de cuspir, a bandida.
As mulheres com quem tenho falado sobre o dilema me têm tranqüilizado, cada uma do seu jeito. Minha mãe diz para “fazer esse negócio de uma vez”. Minha esposa fala quer que eu viva um tempão. Já minhas amigas são metidas a engraçadinhas e ficam com umas bobagens de “quem sabe tu pegas gosto”. Já minha sogra que é oncologista é puro pragmatismo: “tens que fazer e pronto”. Mas desconfio que para elas é mais fácil – pela natureza e conformação genética. Então resolvi consultar alguns amigos.
As entrevistas são difíceis. Todos falam muito pouco sobre o assunto. São respostas monossilábicas, não passam de um ah. Até reparei que uns e outros arrastavam um pouco o H, mas achei melhor não comentar. Quando sai uma frase, falta concatenação. Compreendi apenas algo sobre necessidades e circunstâncias. De resto são coisas soltas ao ar. Alguns amaldiçoam o avanço da medicina, o exame preventivo e o bom senso; o instinto de preservação e até a covardia frente à morte. “Mais vale um dedo futucando a cabeça por muitos anos do que um esquife feito às pressas”, filosofou um sem muita segurança, tentando ajeitar-se na cadeira com o olhar parado no nada. Um outro me confessou que fez pelos filhos, e agora, de uma hora para outra, “sem mais nem por quê”, começou a distribuir porrada entre a gurizada.
Noves fora, o caso é que estou numa sinuca de bico – esqueçam o taco, pelo amor de Deus. Chegou minha vez de enfrentar o imponderável.
Lembro que meus pais tinham um amigo cujo apelido era Piroca. Só entendi o porquê da alcunha quando descobri a profissão do homem: urologista. Achei engraçado o cara ter escolhido um trabalho desses para ganhar a vida. Olhar e mexer em pirulitos todo dia (?), gozado, né!? Tá bom, pensava eu, merecia o apelido e as piadas infames. Mas estou começando a achar que quem ria de verdade, por último por assim dizer, era ele. Agora aquele bigodinho ralo e os óculos grandões não me saem da cabeça.
Ai, que medo do Piroca. Ele que parecia tão amigo.

segunda-feira, setembro 8

Por Cora e Nina

O calor fora de época bateu na casa dos trinta. Além de quente está abafado. Um vento forte e quente sopra, zune, atiça a terra levantando a poeira que rodopia e vai tingindo de marrom o arvoredo. Os cães estão ouriçados. Rolam, coçam os olhos, esfregam os ouvidos no chão - desesperam-se para estancar o zunido. Nos pastos os potros trotam inquietos. É a primeira vez que experimentam tamanho sopro. Giram em volta das éguas, disparam em direção ao aramado e retornam às mães para cutucar-lhes os ventres e voltar ao útero. Como não conseguem, cismam com os quero-queros negando aos bichos acesso a cacimba. O juncal deita e chicoteia o espelho d’água. As saracuras na falta do abrigo correm atarantadas. Quem vai sem barbicacho corre abestalhado, revoluteia feito mariposa. São as ventanias de setembro conclamando tormentas. A coisa vai encrespar. Na fronteira o horizonte já se acinzenta. Quando o mau tempo chegar aqui e esbarrar no calorão as nuvens pedirão emprestado o verde do musgo e a força do gelo. O céu vai desabar.
Quando piazito, na casa de praia, recebíamos o temporal em festa. Casquinha torrada, puxa-puxa, mariola, toró em devaneio. As calçadas eram tomadas pelas águas. Saía a pedalo com a monareta dourada, o bando e o sulco para trás. Tinha um beco logo adiante. Para nós parecia longínquo demais, além mar. No fim, um sobrado abandonado lembrava um navio. A enxurrada trazia a areia, a rua ficava lisa, asfáltica feito o litoral que se alonga do extremo sul. A nau encalhada era um regozijo. Os pequenos piratas dançavam a conquista no sibilo dos ventos que açoitavam os pinheirais. Pilhávamos, dávamos velas aos mastros, ganhávamos um mundo que sequer imaginávamos. Quando as águas baixavam errávamos pelo bairro para avaliar os destroços, procurar pequenos tesouros perdidos, quinquilharias que o mar trouxera e deixara para trás no recuo. Mulheres e homens gritavam de suas varandas enlameadas para que voltássemos para nossas casas, que evitássemos as bocas de lobo abertas. Mas não, éramos exploradores que agora já se viam no pasto alagado. Com as cavalariças abertas pelo vendaval os animais corriam soltos. Cercávamos os zainos, ruanos, baios e vermelhos. Montávamos em pêlo, crinas entre os dedos, patas levantando o aguaceiro do charco. Que mundo grande aquele nosso! Mil tiros de laço não o prostrariam. Não precisávamos de mais nada. Se a peonada chegava e com o relho em riste nos fazia correr, ainda restava a captura dos gerinos desalojados de suas sangas. Um laboratório a céu aberto oferecendo experimentação. Levávamos para casa espécimes em diferentes estágios de crescimento. Queríamos ver a cauda cair, as pernas crescerem, o corpo achatar, mantê-los cativos até a metamorfose anunciar-se pronta no primeiro coaxo. Depois os devolvíamos ao banhado para que perpetuassem o ciclo e nos dessem mais filhotes na estação vindoura.
Os verões, os invernos, as tempestades, as gerações de sapos, rãs e potros, todas passaram.
O navio, os pastos, as sangas, os exploradores, não estão mais lá. Nem a casa e a velha italiana gorda que nos alimentava com tripadas, massas e doces para que tivéssemos sempre energia e imaginação para singrar vidas. Foi-se ela, nossa coragem, os dias intrépidos.
Acho que é por isso que quando o tempo vira, quando a tormenta se anuncia, quando a trovoada me faz surdo, o tempo volta pra trás. Se tudo se foi, me restou o vento. E abro os braços para ele – e que me leve, me leve. Me assanhe a alma, sacuda o meu corpo, embale meus braços e junto os novos berços de onde saltarão minhas extensões para perpetuar o ciclo - vicejar nas estações vindouras.

sábado, setembro 6

Casório


Quando eu mais minha prenda resolvemos juntar os trapos foi coisa rápida. Nesses assuntos não se justifica protelação. Tendo-se gosto um pelo outro se esticam as cobertas logo de uma vez e esquentam-se os garrões. Pedido feito e aceito, saímos à procura de um rancho que nos fizesse gosto, colocamos as anáguas e as bombachas no mesmo baú e de mala e cuia nos assentamos. Junto conosco, a guriazinha parida em outro casamento e hoje filha também minha. Xirú que se afeiçoa a galinha abraça também os pintos. Se não o faz, lhe faltam os costados. Isso já lá vai quatro anos, e outro dia cismei de fincar as botas no altar. Marquei a igreja, encomendei o padre, e dei notícia pros mais chegados.
Um dia depois de convocar a batina encosta na porteira a ajudante da paróquia empertigada em coques e crucifixos querendo saber da papelada e dos anúncios. Meio perdido, todavia de maneiras a não parecer desentendido, retruquei:
- O papel podes datilografar que borro o polegar sem medo, quanto aos anúncios, não te preocupas que já toquei corneta na família.
Meio desconfiada, ela explicou que se tratava de ir ao cartório dar entrada nos papéis para o rapaz da repartição avisar todo mundo sobre as intenções do casório.
- Mas eu já avisei. Está todo mundo a par, e fazem gosto.
- Não é isso. Vai sair nota no jornal, se alguém tiver alguma coisa contra, o padre não casa ninguém.
- A la pucha, como contra?
- Não sei, uns e outros podem ter motivo para o impedimento. Tem de esperar para mais de mês dando tempo para as reclamações. Se não tiver nenhuma, sai casamento.
- Como assim, agora para entreverar os pelegos tenho que pedir licença pros outros e dar orelha a ladainha? Já te disse que o pai e a mãe da prenda não desconhecem a situação. Não tem segredo, está tudo nos conformes.
- Não posso fazer nada, funciona desse jeito, não fui eu quem inventou. E mudando o rumo da prosa, o senhor não quer comprar a rifa da quermesse, ou doar umas tintas para ajeitar os santos que estão descascando?
- E santo lá é bergamota pra descascar? Se descasca não é santo, é pau oco.
- Malcriado, fariseu! Isso não vai ajudar nada nada com o padre. Aliás, o senhor tem ido à missa? E as confissões, estão em dia? E aquela guria ali no pátio é filha tua?
- Não, é filha dela.
- Não entendi.
- É só dela, de outro casamento. Satisfeita agora?
- Ah, então tem outro homem. Vocês fugiram?
- Pelo amor de Deus minha senhora, ela é separada.
- Sei, sei... O desquite já saiu, o divórcio tem carimbo?
- Já falei, ela é separada.
- E eu vou falar de novo, o divórcio tem carimbo? Ai, ai, ai... Aposto que nessa toca tem tatu. Acho melhor ligar pro padre.
- Mas que padre?
- Os documentos da criança, tu tens? O pai sabe que ela está aqui, a mãe, cadê?
- Trabalhando.
- Volta quando?
- Amanhã.
- Acho melhor ligar pro delegado.
Fiquei furioso. Só não descabei a madeira na carola porque sou homem de razão e percebi que a peleja não era com ela.
Meio a contragosto resolvi trotar na lei. Pus tento na papelada, dias depois dei vista no jornal e fiquei no aguardo dos impedimentos. Como não gosto que me peguem com as calças na mão fiz uma boa faxina na Boito. Lubrifiquei os ferrolhos, amaciei os gatilhos, calibrei a alça de mira e municiei a negrita com chumbo de matar pato. A garruchinha não precisou de muita função. Mantenho a pequenina sempre em dia que foi presente de um tio morto de muito apreço.
Bem sentado, que venham os reclamantes!
O chato de toda a história é que comprei missa e salão de festa sem saber das necessidades que os códigos exigem. E quem iria saber? Para que tanta bobagem? Se eu quero e ela quer, quem mais tem a ver com isso? Que metam as fusas no que lhes diz respeito? E esse negócio do pope? Quem ele pensa que é para não casar os outros? Afinal, além de rezar missa, encaminhar moribundo, comer, beber, dormir e bolinar beata, não é pra isso que padre serve? Precisa tamanha complicação?
Pois foi o mês, e no andar dos dias, contei para minha prenda sobre o intento que até então era surpresa. Ela ficou lisonjeada, feliz feito joão de barro depois da chuva. Mas dali a pouco travou o sorriso e montou careta.
-Mas o que foi?
-Não posso casar.
- Ué, mas nós já estamos amasiados tem anos, que diferença faz?
- É o desquite, falta o carimbo.

quinta-feira, setembro 4

Despautério


Isso é sério?




Os critérios avaliados para sediar uma olimpíada passam por tradição olímpica, força econômica, infra-estrutura, segurança interna e peso político. Não preenchemos nenhum dos requisitos. A cidade candidata então, nem se fala. Faltam hospitais e sobraram mosquitos. Voltamos à selva e os pernilongos matam como no início do século passado. Transporte público só é piada para quem não usa. Trens e metrôs? Sucatas. Já os ônibus, estão sempre superlotados arrastando-se feito lesmas por vais entupidas e enfumaçadas. De resto - carros, táxis, peruas ilegais, caos e buzina entre caveirões bloqueando acessos.
A segurança interna é de chorar. Não me alongo, o alvo é fácil demais. Polícia corrupta e despreparada, traficantes, milicianos e todo tipo de bandidagem a solta com armamento pesado cuspindo bala pra tudo quanto é lado.
Aos que abanam com o argumento do Pan-americano, recomenda-se parcimônia e bom-senso com a sensação de segurança e caixas pretas. Trégua, não vale. E se os problemas de infra-estrutura podem ser solucionados em menos de oito anos, o que duvido, será à custa de muito dinheiro público federal que premiará décadas de leviandades, falta de investimentos, roubalheiras e ausência de compromisso com a coisa pública por parte de sucessivos governos municipais e estaduais. Se for assim, todas as outras capitais dos estados da federação têm por direito e dever cobrar os mesmos recursos em igual espaço de tempo.
Quanto à tradição olímpica, não temos nenhuma. E não adianta choramingar por dinheiro. Em geral, a penúria é das federações e não dos dirigentes.
O investimento no atleta começa na escola pública. Educação física não é jogar uma bola no meio do pátio, quando houver um, é claro. São professores bem pagos, ginásios, quadras, pistas de atletismo e material esportivo. Projeto bom, seu Nusman, passa por políticas de incentivo a competições escolares municipais, estaduais e nacionais. Para os destaques das diferentes modalidades, bolsas de estudos e engajamento em centros esportivos de excelência custeados pelos impostos e geridos com seriedade por representantes da sociedade civil e federações. E para elas, eleições diretas com direito a voto para os atletas técnicos e dirigentes afiliados. Projeto bom, senhores cartolas e políticos de carreira, é botar dinheiro nos pequenos projetos que estão nas periferias de todo país tirando crianças das ruas. Iniciativas essas na maioria, capitaneadas por alguns abnegados que doam seu tempo e dinheiro ralos em nome do esporte e da comunidade em que vivem. Qualquer plano, delineamento, empreendimento, senhores, passa em primeiro lugar, em traçá-lo em nome do esporte e não por alforjes esturricados de moedas e vaidades pessoais. As estrelas de hoje e as que brilharão amanhã não deitam a barriga sobre o mogno dos gabinetes.
Pois então, quando tivermos cidades limpas, seguras, ordenadas. Escola pública de valor, centros esportivos, federações fortes e ilibadas, e por conseqüência, desempenho olímpico, pensemos em sediar evento de tal porte. Francamente, enquanto os coitados dos nossos atletas forem a TV para chorar e desculparem-se a nação, estaremos mal. Com todo respeito a vocês atletas, não se arvorem em achar que algumas parcas medalhinhas redimirão esse país e nosso orgulho. Não queremos heróis, mas sim crianças sadias, que porventura, tornar-se-ão atletas. E que então, pois, tenham um salário digno, condições de trabalho e orgulho de representar um país que apostou tanto no desmilinguido que melhorou a coordenação motora e hoje vive melhor, como naquele que se tornou medalhista olímpico.
Pequim não nos pertencia. A culpa não é de vocês. Muito menos do psicólogo que esqueceram de levar. A culpa é minha, do meu vizinho, dos meus concidadãos. De qualquer forma, que tal participar um pouco mais ativamente das federações as quais pertencem?

terça-feira, setembro 2

Maisena

Alguém aí já participou de um colegiado? Aquelas reuniões em que os notáveis de alguma coisa qualquer se reúnem para parolar e ajuizar sobre assuntos que urgem por solução, e de tão importantes, invariavelmente decide-se que é melhor não decidir nada.
Pois eu já, e lhes digo, não é fácil.
Entre os insignes sempre têm os de maior vulto - quem atesta normalmente é o papel - e todos acreditam piamente que o lustro maior é o seu próprio. É confusão que não acaba mais. Insinuam-se até os menos favorecidos que descobriram a pólvora das idéias e a esperança da sapiência. Como se bastasse às traças a gula por onde deitam as letras. E a percepção imediata dos acontecimentos, e a transcendência dos limites da experiência? Imaginação, quem sabe? Não! Listam livros e autores, desafiam-se mutuamente, se digladiam buscando o contrapé do oponente. Quando as batalhas começam opto pelo zelo e fico calado. Não sou sabido assim. Desconheço tamanhas bibliografias e o panteão de pensadores evocados. Prefiro recolher-me a minha insignificância e puxar conversa com um colega ao lado. Na falta de um parceiro, acabo folheando disfarçadamente um Bukowski. Vocês preferem “Notas de um velho safado”, ou “Hollywood”? Bem, invariavelmente, quando levanto a cabeça não se chegou a lugar algum. Eu, bobalhão, pego uma bolacha para mastigar, em colegiados sempre tem biscoito, e acabo concluindo que o importante mesmo é a maisena que forra o estômago.
Como não se decide nada, porque o nada não é tão simples, determina-se a formação de uma comissão. Não, obviamente, com poderes decisórios, mas para discutir melhor, refletir mais um pouco, em lupas, esmiuçar o assunto. E eu que gosto muito de atividades que envolvem lupanares, logo aponto o dedo.
Fico encarregado de missões bastante importantes. Guardo os papéis, prego bilhetinhos de lembrete das datas das novas reuniões e, um dia antes, telefono para todos lembrando do compromisso. Além, é claro, de implorar para não faltarem, afinal, são assuntos que urgem por desencadeamento e voltarão à pauta no próximo encontro do colegiado ainda não marcado. Encarrego-me também, e isso admito, por interesse próprio, das bolachinhas. Já salientei em textos passados que com fome perco os estribos, e é nessa hora que a gente diz um monte de besteiras. Como por exemplo, achar que entendi por que certos processos e meios de organização quando destorcidos abrem brechas para o surgimento dos Tchítchicov(s) da vida a encher o saco com almas mortas.
Mas não tem nada, não! Sempre fui a favor do debate, desde que no fim as minhas idéias prevaleçam, minhas ordens sejam acatadas e meus desejos saciados. Democracia é assim, pelo menos é o que tenho visto cá no país nos últimos anos. Um monte de gente discute, fala o que bem entende, exercita o livre pensar, mas a decisão mesmo é para quem pode, e obedece quem tem juízo. Justamente por termos tido muito pouco na hora de escolher que apita. Quando o que se mobiliza se desvia e em vez de ganhar corpo desmilingüe, nos resta o pasto, e quiçá, um tantinho de maisena.

quinta-feira, agosto 28

Gás


Estou em uma sala de vidro, em um computador que não é meu, em uma cadeira em que não ajeito a bunda, de frente para um corredor estranho. Ao menos estou só e posso soltar uns punzinhos de vez em quando. Só estou meio ressabiado com a câmera de vigilância. Sei lá, é tanta da tecnologia que fico desconfiado. Se não tem jeito, descontraio a carantonha como quem pensa na morte da bezerra, e mando minha brasa. Por via das dúvidas, resolvi trancar a porta e lancei mão de uma régua enorme, que apesar do frio, improviso como leque. Não sei se questões intestinais vos interessam. O tema é delicado e exige estômago. Mas vá lá... Eu sou um curioso do assunto.
Na absoluta falta do que fazer tenho pesquisado sobre a emissão de gás e as metodologias que se impõem para liberá-los. Singramos tempos difíceis. É o efeito estufa, o aquecimento global, os dias em Brasília, e a tão delicada parcimônia de julgamento para exercermos o politicamente correto. Há que se ter estudo. Afinal, ninguém dá ao mundo o aroma das rosas, senão elas próprias. Quiçá um dia, com o avanço das pesquisas. A propósito, já existe um abdicado grupo interdisciplinar que desenvolve estudos na estação espacial internacional. O problema, por ironia, é que eles têm trabalhado com pouco espaço e com ar reciclado. As turbinas de purificação são do tempo da guerra fria e o oxigênio já veio viciado. Por conta disso, alguns cientistas desistem e abandonam o projeto. Os americanos culpam o Khrushchov. Dizem que na época, deveria ter liberado mais verbas para MIR. Já eu acho que quem tá sabotando o projeto é o Bush, peidorreiro de marca maior.
Mas analisemos os dados.
Um vivente em boa forma despeja na atmosfera quantidade razoável de metano. Em média, são doze emissões por dia. Boa parte são curtas, apressadinhas, e gostam de espaços abertos. São escapulidas apertadas, um “ops, por essa tu não esperavas”. Chegam de susto num andar apressado, num levantar pernas descuidado. Pequenas bolhas, quase inodoras, insignificantes até.
Mas entre os apertadinhos, denominação da categoria, existe gaseificação mais perigosa. Surge esporadicamente, usa boina e é metida a independente. Cria pânico quando sem anúncio dispara: “deixe-me sair senão te explodo”. Intransigente, não costuma negociar. A solução é soltá-lo aos poucos no intuito de amenizar seu ímpeto. Com treino e disciplina o emissor transforma o rugido em miado. Só não pode fotografar, senão acaba virando mito e servindo de exemplo aos mais tímidos.
Já na categoria dos folgadinhos estão os displicentes. Chegam e pronto. Têm um ar de estamos aí, qual é que é? São despreocupados tipo: “nós já passamos por isso”. São os famosos queimadores de sofás. Gostam de aparecer entre os cobertores, nas longas viagens de carro, entre amigos e casais de longa data. Podem tanto ser barulhentos, como discretos, e o odor depende do mês e das contas por pagar. Não chegam a ser um grande problema. Usufruem de intimidade, são moderados, e não desejam mal a ninguém. É o peidinho classe média, sempre conservador.
Perigosos mesmo, e que têm dado muito trabalho aos pesquisadores, são os apocalípticos e não integrados. Esses são de matar. Supernovas a expandirem-se no universo. Não tem pra ninguém. Voláteis por suas características avinagradas, destroçam as capilaridades olfativas definitivamente. São produzidos pelo alto consumo de carnes, ovas de esturjão e Dom Pérignon. Mas acima de tudo, pelo “como, e daí? Fodam-se os outros”. Suas usinas geradoras têm estirpe: cardeais, bispos, grandes empresários, políticos de carreira e senhoras que presidem ongs para poodles carentes. Sua capacidade de infestar o ambiente deve-se a sua massa atômica extremamente pesada. Não tem quem possa com eles, não há ventilador que os disperse. O apocalíptico senta, cruza os braços e fica. Geralmente silenciosos, há exceções, e por vezes fazem barulho. E não adianta tentar prender, algemar, que eles te processam. São sempre, sempre, muito quentes. A temperatura elevada é proporcional ao tempo de maturação que pode chegar a quinhentos anos. Seu convívio com o emissor é longo, e pode inclusive passar de pai para filho durante gerações. Daí o seu alto grau de expansibilidade e putrefação.
Pois bueno... Além das categorias acima, existem ainda muitas outras, mas sem dúvida, são variações, com maior ou menor poder de impacto. São as emissões com crises de identidade e pouco caráter, capazes de qualquer coisa para um dia ser, ou ao menos conviver com os apocalípticos. Pouco se sabe sobre elas. Vivem pelas sombras tentando ganhar o espaço. Sabe-se sim que, justamente por isso, são muito perigosas.

terça-feira, agosto 26

Jantar dançante


Sábado passado era noite de jantar dançante. Fui eu, mais minha sogra Magdalena, mais minha esposa Janaina, mais minha enteada Cora, mais a Nina, que ainda nada no bem bom da placenta, a guriazinha. Foi lá na Boca do Rio, no Ribeirão da Ilha. No convite dizia oito horas, e que era “imprescindível a apresentação deste”, mas como o pessoal gosta de chegar cedo, sete e meia todo mundo já estava aboletado em seu canto esperando pelo jantar para depois girar em dança. Era noite de festa-baile. No centro do salão, duzentos metros quadrados de parquet pra xirú nenhum botar defeito quando for bater os tacos na chula.
O povo chegou mais enfeitado que bidê de china. Seu Nenê, enfatiotado e de flor na lapela, ia altaneiro, passada larga, braço em arco para dona Mazinha apoiar o pulso todo colorido, perdido em argolas e todo tipo de bijuterias. Renomado pé-de-valsa da região, cheiroso além da conta, seu Nenê era uma indocilidade só. Queria pular a janta, fazer jus à fama logo de uma vez. “Comer, como em casa”, alardeava pelo salão, e principalmente nos ouvidos do cunhado enquanto lhe puxava os panos. Seu Marola, homem da pesca, comandante de rede que tirou do mar de uma só vez seis toneladas de tainha, pedia cuidado que os agarrões haviam de acabar lhe estragando as vestes. A calça de missa já não era tão nova, afinal. A camisa vinha meio amarrotada, é bem verdade, mas o paletó de gabardina de lã, a la pucha (!), dava tonteira de tão bonito. Ele jura pelos cardumes que ainda não estufaram suas linhas que foi ele mesmo quem tosquiou a ovelha e depois mandou fazer a casaca num tintureiro que se dizia também alfaiate. Como ele entende é de peixe, e isso, aqui não se discute, criou-se uma pequena controvérsia sobre sua destreza com o tesourão de tosa. Mas se o seu Marola contou e afirmou, há que se dar por fato.
Dona Neuzinha chegou com a nora, o filho e a netalhada que faz número de pelotão. Saia xadrez, cacharel de gola alta e um casaco que só de ombreira tinha meio metro. Presente de um caixeiro viajante que na década de sessenta travava comércio pros lados do Ribeirão. Homem pequeno de olho miúdo, um agiota nas finanças e escambos, porém tímido entre perfumarias, morreu sem declarar sua paixão.
Mas no salão, entre todos, quem mais chamava atenção eram as moças solteiras em prontidão de matrimônio. Ah, essas nem precisa dizer que mais vistosas só laranjas de mostruário.
Em suma, cada qual dos partícipes ia à sua estica. Cada um na sua preferência. Se as roupas eram velhinhas, têm preservação na naftalina, nos cuidados da lavagem, e na mestria do ferro de carvão. Porque esses de hoje em dia só servem pra dar choque e derrubar resistência.
A noite ia bonita, até que o dono do bufete resolveu esculhambar com tudo. Já que em festa concorrida não dá pra todo mundo encher o prato ao mesmo tempo, quem estava sentado na mesa da fichinha azul foi primeiro. Depois seriam as vermelhas, rosas, roxas, e por fim, verdes. Nem preciso dizer qual era a minha cor. Logo que chegamos escolhi uma mesa. Reparei no cartãozinho colorado, mas não sentei atenção, achei que fosse para algum sorteio sem importância. Acomodei as damas e fui ao bolicho vizinho comprar cigarros, quando voltei, meu lugar já era outro, e minha ficha também. Os ponteiros do relógio de parede já apontavam às onze horas, e nós de pandulho vazio. Minha sogra diz que com fome fico feito siri enlatado. Não sei bem o que isso quer dizer, sei sim, que num primeiro estágio, fico é descorçoado, e no segundo, enfurecido. Perco os estribos, rodo de um lado pro outro, caminho como quem marcha, xingo a mãe do bolicheiro. Quando finalmente consegui fincar o garfo num tatu recheado, aparentemente muito bem feito, a orquestra já atacava com “Amigos para sempre”. A essas alturas, seu Nenê chutava-me a bunda, ordenava aos gritos que saísse do meio da pista, e antes que desse de mão no tatu, arrastou a mesa.
- Quer comer(?), vai comer em casa.
- Mas seu Nenê, eu ainda não jantei, a minha ficha era a verde.
- A minha também. Se tu tivesses prestado atenção e ajudado a servir os netos da dona Neuzinha não ficava aí resmungando. Dá de sebo, magrelão. Tá na hora do baile.

segunda-feira, agosto 25

Fumaça


Fumar é uma bosta. Como fumo desde os quinze anos, posso deduzir que estou chafurdando na merda há um bom tempo. Pertenço ao vício? A responsabilidade é inteiramente minha? Não tenho a menor dúvida que sim. Em defesa do indefensável só posso argumentar que o silogismo não era passível de aplicação quando abocanhei meu primeiro filtro. Primeiro porque não tínhamos metade das informações que temos hoje. Segundo, pelo simples fato que todo mundo fumava. Quem pitava era legal. Por Hollywood, era mais que isso, era cool. Fuma-se nos filmes para encantar as mulheres e depois comê-las, e fumava-se também, e isso era imprescindível, depois de tê-las comido. A impressão é que a primeira baforada nos lençóis era tão boa quanto a primeira gozada. Até em desenho animado as personagens fumaravam. Quem não lembra dos charutões e cigarrilhas em Hanna& Barbera!
E nos comerciais então? Para a conquista de uma montanha só inalando muito fumo durante a subida. Já no pico, relax, e dê-lhe fumaça no horizonte. Fico imaginando os caras no meio do K2 dando uma boa tragada. Bobagem, os êxitos eram tremendos. Navegava-se de Hobiecat em velocidades assustadoras. Cavalgava-se por pradarias infinitas. Quando não se estava domando os mares, conquistando cordilheiras ou cavalgando por um poente ao encontro de um pescoço em echarpe, estava-se sendo sutil, romântico, delicado... Só sei que poderia ser por “um raro prazer”, ou ainda ter alguma coisa em comum com gente muito descolada. Saxofonistas, pintores, atores, entidades de bem com o mundo.
Na vida real, como todo mundo queria escalar montanhas e trepar um monte de mulheres, um cigarrinho com campari disfarçava a ignomínia do mundinho nosso de cada dia. E cá pra nós, a cor do campari não é demais? Com uma espiral de fumaça então... Comprávamos Minister para o pai, e Ella para a mãe. Crescemos assim, nossos ídolos, referências e desejos estavam intrinsecamente ligados a uma boa tragada.
O primeiro cigarro que botei na boca foi por ordem de meu pai. Era guri muito novo, cinco, seis anos talvez, e resolvi fumar uma bic depois do almoço na varanda da casa de praia. Meu avô, cérebro perdido em derrames, cochilava na espreguiçadeira perto de minha tia. Meu velho veio da sala viu a cena e resolveu me aplicar um corretivo. O homem me alcançou um cigarro, mandou sugar e depois engolir a fumaça. Quase botei os bofes para fora. Até meu avô, refém do entupimento de suas veias levantou as pálpebras exibindo o verdume dos olhos. Achei que nunca mais iria colocar uma coisa daquelas entre os lábios. Quem dera!
Quando as calças se desvencilharam das bainhas era hora de afirmar o buço e o inchaço do pau. Íamos em grupo ao cemitério para praticar a difícil arte de tragar e fazer a fumaça escoar pela boca e narinas com naturalidade. Juntávamos os vinténs e dávamos preferência ao filtro amarelo, essa era a cor dos homens. Chegávamos ao fim da tarde nauseados, o vômito escapando entre os dentes feito chafariz. Na maioria das vezes alcançávamos à bílis. Deitávamos sobre a pedra fria dos túmulos e tontos acompanhávamos o movimento das nuvens. Minha mãe sacou e tentou dar ultimado. Fez ameaças, jurou reprimenda. Tolice, o treino mais profícuo era longe da gurizada, sozinho, montado no ipê amarelo do barranco de casa com o Ella que furtava de sua bolsa. O afinco da busca deu resultado. Foi numa noite fria de um aniversário no descampado do rancho de festas do décimo nono batalhão que traguei como homem. Com a reverência dos meus e muito vinho barato, a noite indo alta e o sereno brilhando no campo, beijei a aniversariante. Pouco me importou se depois vomitei o garrafão de tinto caseiro que havia emborcado - havia me tornado um caçador. Que viessem as montanhas, os Hobiecats, as mulheres em seus longos vestidos e lábios em carne.
Passaram-se todos esses anos, bons anos! E do cemitério, e da noite no quartel aos dias de hoje, eu devo ter pitado hectares de fumo. E agora, concomitantemente a frase que caminha para o ponto eu continuo a tragar. Estico o braço e confiro quanto ainda me resta no maço. Preocupo-me se é o bastante entre as vírgulas que tenho que trabalhar melhor. Se é o suficiente, se chego a revisão, se a quantidade que me resta permitirá mastigar o texto até estar satisfeito.
Minhas ações atrelam-se ao meu vício. Penso em parar? Cavouco na busca da coragem, a mesma que foi necessária para primeira tragada, para abandonar o fumo? É claro que sim, todo viciado pensa. Mas só pensamos. Paralisa-nos o sofrimento físico da ausência, da perda do suposto charme, de não ver graça nas refeições. Nós fumamos, queremos parar, temos medo de não conseguir, não nos imaginamos sem o cigarro. Somos fumantes.
Salvar texto. Vou pitar na varanda.

quarta-feira, agosto 20

Belzebu


Hoje acordei com a cachorra, atacado feito anão em comício... olhando de lado, tchê loco salivando, pronto para confusão. Vou pra rua enfiar um tapão na orelha do primeiro desafortunado que topar pela frente. Vou montar campana junto ao portão. Ai... que me atraco. É só esperar que alguém desça a rua.. Pode ser o capeta chupando manga. Chuto-lhe a bunda, corto-lhe os chifres, mijo-lhe nos cascos. Cinjo o medonho pelo pescoço, rolo com o coisa ruim até as profundas. Corto-lhe os bagos, como, engulo, limpo os dentes com o que lhe sobrar dos pentelhos, e meto a mão na china perdida mais cara e safada que lhe serve a devassidão.
O rabo mando pra são João Evangelista. Que lhe sirva como relíquia.
É, é isso mesmo, levantei ruim dos cornos. E a causa? Não tem bom motivo, só despreguei da cama desse jeito, contrariado feito guri de recado. Embestado, raivoso, enlouquecido, cachorrado, canino afiado em ventos de setembro. Se me encostar, eu mordo, estripo, tiro o couro, e para outra peleja logo me habilito. Tô tinindo por perturbação. Abro mão de uma boiada por um bom enfrentamento, e desfaço-me de outra maior ainda pra não sair até que esteja estatelado, sangrado - desamparado ou vitorioso, mas lambendo o chão. Pode ser de soco, pernada, sarrafada, pedrada, ou de quantas facas permitir o manuseio. Só não pode ser de bala, que aí perde a graça. Distanciam-se os olhos, perde-se o cheiro.
Acordei de guampa torta, azedo de verdade, com a sensação de mundo acabado. A minha língua tá ardendo, bem capaz de produzir veneno. Cuspo, ejeto, profiro, até em olho de velhinha projeto mira. Nada tem valor. Bom, só o que estiver despedaçado, estrebuchado, degolado, destruído, acabado. Tô rastejando pelas sanjas, descendo pelas gretas. Senhor leptospirose, monarca de porão.
Hoje acordei vidrado, louco de bater de pau. Sanha de chicote, lâmina fria, ponta de esporão. Tô de bola virada, envessado, atazanado, descabelado. Senhor unhas grandes de olhar vermelho, boca seca e punhos cerrados.
Hoje acordei nos cascos... engraçado, tá passando... As espáduas já vão menos rijas, os braços mais folgados, os dedos relaxados.
O teclado tá um trapo. Afundam-se as teclas, saltam as letras. Parece-me sem arrumação. Já tô mais tranqüilo, tenho mais o que fazer. Agradeço a tolerância. Livrem-se do amargor. Estão piando lá no pátio. O sol alcançou a testa.
Dando-me licença, alma mais leve, vou prosear com a bicharada.

terça-feira, agosto 19

Tempos difíceis

Embora o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o tal do IPEA, ande arvorado a tagarelar que a pobreza diminuiu, e que e a classe média ganhou milhares de novos sócios, etecéteras e blá, blá, blás, tenho dormido com a pulga atrás da orelha. Na verdade, são tantas que, vez que outra, me invadem os orifícios. Não sei se para servirem-se da cera, ou se só por atazanar.
Digo isso pelo que tenho ouvido do compadrio. Todos estão preocupados. As patroas armaram-se de facas e cortam o que vêem pela frente, o que tem causado um certo desconforto e um medinho disfarçado. Alguns admitem que têm urinado sentados e de porta fechada. As novas normas impostas pelas matronas em vistas de economizar alguns patacões variam muito, mas todas dependem do humor da mulherada. Luzes acesas sem necessidade e torneiras abertas têm dado mais confusão que de costume. Banhos demorados é gritaria na certa. Quem tem adolescente em casa escondeu as chaves dos banheiros. Telefone é severamente controlado. Algumas, mais radicais, tiram o cabo do aparelho e escondem o falante nas gavetas que filhos só mexem sob pena de descobrir que mãe também é mulher.
Até aí, não cheguei a estranhar muito, não. Mas algumas estão levando a coisa a extremos.
Conta-me um dos sujeitos que a Dona Marieta, vizinha do seu Lilica, cismou com a descarga da patente. Xixi para mandar embora, só depois do terceiro. Anota tudo na planilha. Quem fez, a que horas, e o tempo do aguaceiro que é medido num reloginho digital que ela encomendou no armarinho da Dona Mercedes. Quem faz de pé, se a água do joelho for muita, a orientação é descarregar na rua. A coisa ficou tão séria que, depois de botar ordem na própria casa, a dona deu para controlar as privadas do seu Lilica. Fica de olho espichado e orelha em pé, e até futricar na conta d’água do homem já futricou.
A vizinhança está em pé de guerra.
Uma outra, para espanto do marido, e da rua inteira que acompanha o caso, está obcecada com papel higiênico. A mulher, além de comprar agora só daqueles que arranham as sensibilidades, exige que eles durem o triplo do tempo de costume. Se ouvir queixa, embravece e manda pegar o jornalzinho que é distribuído gratuitamente no bairro. Outro dia, a amalucada estipulou que assoar o nariz, só quando for fazer cocô. A nora, que mora numa meia-água nos fundos do terreno, resolveu fincar matrícula num cursinho de origami, já que o ordenamento é aproveitar o mesmo pedaço de papel. Tá todo mundo preocupado em não fazer confusão e trocar a ordem do que deve se limpar primeiro. Seu Alaor, marido da danada, anda visitando algumas casas de repouso. Tá achando melhor que ela descanse por alguns meses.
Outro caso que armou o maior rebuliço é o desaparecimento da gataiada. Dizem os linguarudos que pra bandas da Lagoa Pequena, pros lados da chácara da dona Efigênia, tem um bocado de jaulas escondidas na mataria, e que a criançada dela até andou ganhando peso. E que o Pirulito, capetinha bom de funda talhada em goiabeira, tá até mais rosadinho. E lá isso, eu também notei. A coisa toda tomou tal proporção que chegou ao comissário. O homem tentou fazer orelha miúda pro sumiço dos bichanos, mas é tanta da reclamação que não restou outra saída se não botar dois praças na rua pra investigar o caso. Dizem que eles estão à procura de colaboradores que ajudem na empreitada, mas sabe como é... todo mundo reclama, fala, fica reinando pelos cantos, mas na hora de ajudar, ninguém sabe, ninguém viu. Até porque o delegado, de novo os linguarudos, é muito amigo da família, e mais ainda, da dona Efigênia. O pessoal já diz que as investigações vão dar em nada, e que no fundo, até é melhor que seja assim. Todos concordam que as noites estão mais tranqüilas, e que até a cachorrada anda mais quieta sem os gatos a miar.

sábado, agosto 16

Lição de casa


Lição de casa sempre foi meu pesadelo. A escola de maneira geral não me agradava muito. Se me lembro bem, já na segunda série meu traseiro coçava na cadeira. Interessava-me mais o Kunta Kintê. Tinha um guri, Maximiliano - o repetente, que podia ficar acordado até tarde. Ele assistia o seriado na TV e depois me contava.
Com o passar dos anos a coisa foi piorando. A cada série que avançava aos trancos e muitos barrancos tudo ficava mais chato. À exceção de história, geografia e algumas professoras de pernas grossas, nada me alegrava. Para piorar ainda mais as coisas o sindicato no Rio Grande sempre teve muita força, e com razão, gritava alto por melhores salários e condições de trabalho. Minha própria mãe era uma rata de assembléias, grandes reuniões que decidiam pelo sim, ou pelo não da greve geral. Era ônibus de tudo quanto é lado. Vinham dos rincões mais longínquos, de cidadelas que nunca ouvira falar. Milhares de mulheres e alguns poucos homens, chimarrão em uma mão e a bandeira do sindicato na outra, todos querendo peleia. O tempo se abria e as tertúlias gritavam por movimento. O governador biônico, um gordinho com cara de sapo e óculos grossos de lentes guaraná, já não agüentava o tranco. Em Brasília, Figueiredo dava sinais que a tropa apeava do poder. Lá se iam três meses com as escolas fechadas. Os professores tinham ótimos motivos, o problema era o retorno às aulas. Eu já não era muito chegado, com os hiatos tinha que fazer um esforço descomunal para entrar nos eixos novamente. Acho que nunca entrei. Nem mesmo em fila para subir até a sala de aula. Negava-me, chegava atrasado, reclamava, olhava enviesado com cara de ruim. Se eles protestavam, eu também podia. Greve de fila, ponto. Na adolescência, para aliviar a tensão, já que não dava para matar aula todo dia e passar a manhã fumando River 90, inventamos um jogo para a hora do intervalo. Ocupávamos duas das oito canchas, naquela época colégio tinha pátio, pegávamos uma bola de basquete estourando de cheia e chutávamos a bicha com toda força possível uns contra os outros. Dezenas de nós, espalhados pelo campo de guerra desejando um moscão para sangrar e dar dor de cabeça a direção e ao SOE.
Mas eles também nos davam trabalho. Lembro bem de uma bedel de corredor. Mulher baixa e sem pescoço, redondamente acima do peso. As bochechinhas vermelhas lembravam as de um buldogue. Estava sempre no meu pé, a infeliz. Quando não era o uniforme, era meu atraso, meu cabelo, o pé na parede, a saída demorada ao banheiro. O importante era me chatear. Quando não estava em ronda ficava sentada numa cabine envidraçada tentando inutilmente segurar as pálpebras abertas, a dorminhoca remelenta. Sua languidez se fez prisão. De saco cheio, virei a guarita, e com a parede atravancando a porta só lhe restou gritar a exaustão. A humilhação foi tanta que a pequenina pediu transferência.
Mas para aprontar, bom mesmo eram os passeios. Uma semana antes do grande dia começávamos a instigar alguns patetas. Alardeávamos que sonrisal com coca-cola dava onda e coragem para beijar na boca. Era um tal de vomitar no ônibus bem chato de agüentar. A coisa ficou séria quando trocamos o sonrisal e o refrigerante por psicoativos como o bentil, e álcool. Aquelas bolas não só davam onda, como deixavam os caras apavorados. Chegamos a ter até um pouquinho de remorso vendo a baba, os olhos esbugalhados, os sujeitos petrificados de terror, mas não achamos justo quando os passeios foram banidos. Sim, éramos o diabo, ou se preferirem, o mau gênio do desagrado, a energia e vivacidade encarnando a desordem e o caos.
As patas ganharam as léguas, e com o andar da carruagem, mesmo que trôpego e descompassado, os butiás foram se ajeitando. Acabei descobrindo fórmulas melhores de personificar o vazio. O tempo, metido a brincalhão, me fez professor, e hoje tenho um puta medo que meus filhos façam a metade do que fiz. Ajudo na lição de casa de minha filha e tendo fazer disso um divertimento. Mas continuo tendo problemas com a escola. Outro dia não olhei um enunciado direito. Ela me dizia que não era daquele jeito. Respeitosa, a coitadinha foi por mim. Errou a questão. Ela tem sete anos e está na segunda série.
Ai, por que plagas navega o Kintê?