quinta-feira, agosto 28

Gás


Estou em uma sala de vidro, em um computador que não é meu, em uma cadeira em que não ajeito a bunda, de frente para um corredor estranho. Ao menos estou só e posso soltar uns punzinhos de vez em quando. Só estou meio ressabiado com a câmera de vigilância. Sei lá, é tanta da tecnologia que fico desconfiado. Se não tem jeito, descontraio a carantonha como quem pensa na morte da bezerra, e mando minha brasa. Por via das dúvidas, resolvi trancar a porta e lancei mão de uma régua enorme, que apesar do frio, improviso como leque. Não sei se questões intestinais vos interessam. O tema é delicado e exige estômago. Mas vá lá... Eu sou um curioso do assunto.
Na absoluta falta do que fazer tenho pesquisado sobre a emissão de gás e as metodologias que se impõem para liberá-los. Singramos tempos difíceis. É o efeito estufa, o aquecimento global, os dias em Brasília, e a tão delicada parcimônia de julgamento para exercermos o politicamente correto. Há que se ter estudo. Afinal, ninguém dá ao mundo o aroma das rosas, senão elas próprias. Quiçá um dia, com o avanço das pesquisas. A propósito, já existe um abdicado grupo interdisciplinar que desenvolve estudos na estação espacial internacional. O problema, por ironia, é que eles têm trabalhado com pouco espaço e com ar reciclado. As turbinas de purificação são do tempo da guerra fria e o oxigênio já veio viciado. Por conta disso, alguns cientistas desistem e abandonam o projeto. Os americanos culpam o Khrushchov. Dizem que na época, deveria ter liberado mais verbas para MIR. Já eu acho que quem tá sabotando o projeto é o Bush, peidorreiro de marca maior.
Mas analisemos os dados.
Um vivente em boa forma despeja na atmosfera quantidade razoável de metano. Em média, são doze emissões por dia. Boa parte são curtas, apressadinhas, e gostam de espaços abertos. São escapulidas apertadas, um “ops, por essa tu não esperavas”. Chegam de susto num andar apressado, num levantar pernas descuidado. Pequenas bolhas, quase inodoras, insignificantes até.
Mas entre os apertadinhos, denominação da categoria, existe gaseificação mais perigosa. Surge esporadicamente, usa boina e é metida a independente. Cria pânico quando sem anúncio dispara: “deixe-me sair senão te explodo”. Intransigente, não costuma negociar. A solução é soltá-lo aos poucos no intuito de amenizar seu ímpeto. Com treino e disciplina o emissor transforma o rugido em miado. Só não pode fotografar, senão acaba virando mito e servindo de exemplo aos mais tímidos.
Já na categoria dos folgadinhos estão os displicentes. Chegam e pronto. Têm um ar de estamos aí, qual é que é? São despreocupados tipo: “nós já passamos por isso”. São os famosos queimadores de sofás. Gostam de aparecer entre os cobertores, nas longas viagens de carro, entre amigos e casais de longa data. Podem tanto ser barulhentos, como discretos, e o odor depende do mês e das contas por pagar. Não chegam a ser um grande problema. Usufruem de intimidade, são moderados, e não desejam mal a ninguém. É o peidinho classe média, sempre conservador.
Perigosos mesmo, e que têm dado muito trabalho aos pesquisadores, são os apocalípticos e não integrados. Esses são de matar. Supernovas a expandirem-se no universo. Não tem pra ninguém. Voláteis por suas características avinagradas, destroçam as capilaridades olfativas definitivamente. São produzidos pelo alto consumo de carnes, ovas de esturjão e Dom Pérignon. Mas acima de tudo, pelo “como, e daí? Fodam-se os outros”. Suas usinas geradoras têm estirpe: cardeais, bispos, grandes empresários, políticos de carreira e senhoras que presidem ongs para poodles carentes. Sua capacidade de infestar o ambiente deve-se a sua massa atômica extremamente pesada. Não tem quem possa com eles, não há ventilador que os disperse. O apocalíptico senta, cruza os braços e fica. Geralmente silenciosos, há exceções, e por vezes fazem barulho. E não adianta tentar prender, algemar, que eles te processam. São sempre, sempre, muito quentes. A temperatura elevada é proporcional ao tempo de maturação que pode chegar a quinhentos anos. Seu convívio com o emissor é longo, e pode inclusive passar de pai para filho durante gerações. Daí o seu alto grau de expansibilidade e putrefação.
Pois bueno... Além das categorias acima, existem ainda muitas outras, mas sem dúvida, são variações, com maior ou menor poder de impacto. São as emissões com crises de identidade e pouco caráter, capazes de qualquer coisa para um dia ser, ou ao menos conviver com os apocalípticos. Pouco se sabe sobre elas. Vivem pelas sombras tentando ganhar o espaço. Sabe-se sim que, justamente por isso, são muito perigosas.

terça-feira, agosto 26

Jantar dançante


Sábado passado era noite de jantar dançante. Fui eu, mais minha sogra Magdalena, mais minha esposa Janaina, mais minha enteada Cora, mais a Nina, que ainda nada no bem bom da placenta, a guriazinha. Foi lá na Boca do Rio, no Ribeirão da Ilha. No convite dizia oito horas, e que era “imprescindível a apresentação deste”, mas como o pessoal gosta de chegar cedo, sete e meia todo mundo já estava aboletado em seu canto esperando pelo jantar para depois girar em dança. Era noite de festa-baile. No centro do salão, duzentos metros quadrados de parquet pra xirú nenhum botar defeito quando for bater os tacos na chula.
O povo chegou mais enfeitado que bidê de china. Seu Nenê, enfatiotado e de flor na lapela, ia altaneiro, passada larga, braço em arco para dona Mazinha apoiar o pulso todo colorido, perdido em argolas e todo tipo de bijuterias. Renomado pé-de-valsa da região, cheiroso além da conta, seu Nenê era uma indocilidade só. Queria pular a janta, fazer jus à fama logo de uma vez. “Comer, como em casa”, alardeava pelo salão, e principalmente nos ouvidos do cunhado enquanto lhe puxava os panos. Seu Marola, homem da pesca, comandante de rede que tirou do mar de uma só vez seis toneladas de tainha, pedia cuidado que os agarrões haviam de acabar lhe estragando as vestes. A calça de missa já não era tão nova, afinal. A camisa vinha meio amarrotada, é bem verdade, mas o paletó de gabardina de lã, a la pucha (!), dava tonteira de tão bonito. Ele jura pelos cardumes que ainda não estufaram suas linhas que foi ele mesmo quem tosquiou a ovelha e depois mandou fazer a casaca num tintureiro que se dizia também alfaiate. Como ele entende é de peixe, e isso, aqui não se discute, criou-se uma pequena controvérsia sobre sua destreza com o tesourão de tosa. Mas se o seu Marola contou e afirmou, há que se dar por fato.
Dona Neuzinha chegou com a nora, o filho e a netalhada que faz número de pelotão. Saia xadrez, cacharel de gola alta e um casaco que só de ombreira tinha meio metro. Presente de um caixeiro viajante que na década de sessenta travava comércio pros lados do Ribeirão. Homem pequeno de olho miúdo, um agiota nas finanças e escambos, porém tímido entre perfumarias, morreu sem declarar sua paixão.
Mas no salão, entre todos, quem mais chamava atenção eram as moças solteiras em prontidão de matrimônio. Ah, essas nem precisa dizer que mais vistosas só laranjas de mostruário.
Em suma, cada qual dos partícipes ia à sua estica. Cada um na sua preferência. Se as roupas eram velhinhas, têm preservação na naftalina, nos cuidados da lavagem, e na mestria do ferro de carvão. Porque esses de hoje em dia só servem pra dar choque e derrubar resistência.
A noite ia bonita, até que o dono do bufete resolveu esculhambar com tudo. Já que em festa concorrida não dá pra todo mundo encher o prato ao mesmo tempo, quem estava sentado na mesa da fichinha azul foi primeiro. Depois seriam as vermelhas, rosas, roxas, e por fim, verdes. Nem preciso dizer qual era a minha cor. Logo que chegamos escolhi uma mesa. Reparei no cartãozinho colorado, mas não sentei atenção, achei que fosse para algum sorteio sem importância. Acomodei as damas e fui ao bolicho vizinho comprar cigarros, quando voltei, meu lugar já era outro, e minha ficha também. Os ponteiros do relógio de parede já apontavam às onze horas, e nós de pandulho vazio. Minha sogra diz que com fome fico feito siri enlatado. Não sei bem o que isso quer dizer, sei sim, que num primeiro estágio, fico é descorçoado, e no segundo, enfurecido. Perco os estribos, rodo de um lado pro outro, caminho como quem marcha, xingo a mãe do bolicheiro. Quando finalmente consegui fincar o garfo num tatu recheado, aparentemente muito bem feito, a orquestra já atacava com “Amigos para sempre”. A essas alturas, seu Nenê chutava-me a bunda, ordenava aos gritos que saísse do meio da pista, e antes que desse de mão no tatu, arrastou a mesa.
- Quer comer(?), vai comer em casa.
- Mas seu Nenê, eu ainda não jantei, a minha ficha era a verde.
- A minha também. Se tu tivesses prestado atenção e ajudado a servir os netos da dona Neuzinha não ficava aí resmungando. Dá de sebo, magrelão. Tá na hora do baile.

segunda-feira, agosto 25

Fumaça


Fumar é uma bosta. Como fumo desde os quinze anos, posso deduzir que estou chafurdando na merda há um bom tempo. Pertenço ao vício? A responsabilidade é inteiramente minha? Não tenho a menor dúvida que sim. Em defesa do indefensável só posso argumentar que o silogismo não era passível de aplicação quando abocanhei meu primeiro filtro. Primeiro porque não tínhamos metade das informações que temos hoje. Segundo, pelo simples fato que todo mundo fumava. Quem pitava era legal. Por Hollywood, era mais que isso, era cool. Fuma-se nos filmes para encantar as mulheres e depois comê-las, e fumava-se também, e isso era imprescindível, depois de tê-las comido. A impressão é que a primeira baforada nos lençóis era tão boa quanto a primeira gozada. Até em desenho animado as personagens fumaravam. Quem não lembra dos charutões e cigarrilhas em Hanna& Barbera!
E nos comerciais então? Para a conquista de uma montanha só inalando muito fumo durante a subida. Já no pico, relax, e dê-lhe fumaça no horizonte. Fico imaginando os caras no meio do K2 dando uma boa tragada. Bobagem, os êxitos eram tremendos. Navegava-se de Hobiecat em velocidades assustadoras. Cavalgava-se por pradarias infinitas. Quando não se estava domando os mares, conquistando cordilheiras ou cavalgando por um poente ao encontro de um pescoço em echarpe, estava-se sendo sutil, romântico, delicado... Só sei que poderia ser por “um raro prazer”, ou ainda ter alguma coisa em comum com gente muito descolada. Saxofonistas, pintores, atores, entidades de bem com o mundo.
Na vida real, como todo mundo queria escalar montanhas e trepar um monte de mulheres, um cigarrinho com campari disfarçava a ignomínia do mundinho nosso de cada dia. E cá pra nós, a cor do campari não é demais? Com uma espiral de fumaça então... Comprávamos Minister para o pai, e Ella para a mãe. Crescemos assim, nossos ídolos, referências e desejos estavam intrinsecamente ligados a uma boa tragada.
O primeiro cigarro que botei na boca foi por ordem de meu pai. Era guri muito novo, cinco, seis anos talvez, e resolvi fumar uma bic depois do almoço na varanda da casa de praia. Meu avô, cérebro perdido em derrames, cochilava na espreguiçadeira perto de minha tia. Meu velho veio da sala viu a cena e resolveu me aplicar um corretivo. O homem me alcançou um cigarro, mandou sugar e depois engolir a fumaça. Quase botei os bofes para fora. Até meu avô, refém do entupimento de suas veias levantou as pálpebras exibindo o verdume dos olhos. Achei que nunca mais iria colocar uma coisa daquelas entre os lábios. Quem dera!
Quando as calças se desvencilharam das bainhas era hora de afirmar o buço e o inchaço do pau. Íamos em grupo ao cemitério para praticar a difícil arte de tragar e fazer a fumaça escoar pela boca e narinas com naturalidade. Juntávamos os vinténs e dávamos preferência ao filtro amarelo, essa era a cor dos homens. Chegávamos ao fim da tarde nauseados, o vômito escapando entre os dentes feito chafariz. Na maioria das vezes alcançávamos à bílis. Deitávamos sobre a pedra fria dos túmulos e tontos acompanhávamos o movimento das nuvens. Minha mãe sacou e tentou dar ultimado. Fez ameaças, jurou reprimenda. Tolice, o treino mais profícuo era longe da gurizada, sozinho, montado no ipê amarelo do barranco de casa com o Ella que furtava de sua bolsa. O afinco da busca deu resultado. Foi numa noite fria de um aniversário no descampado do rancho de festas do décimo nono batalhão que traguei como homem. Com a reverência dos meus e muito vinho barato, a noite indo alta e o sereno brilhando no campo, beijei a aniversariante. Pouco me importou se depois vomitei o garrafão de tinto caseiro que havia emborcado - havia me tornado um caçador. Que viessem as montanhas, os Hobiecats, as mulheres em seus longos vestidos e lábios em carne.
Passaram-se todos esses anos, bons anos! E do cemitério, e da noite no quartel aos dias de hoje, eu devo ter pitado hectares de fumo. E agora, concomitantemente a frase que caminha para o ponto eu continuo a tragar. Estico o braço e confiro quanto ainda me resta no maço. Preocupo-me se é o bastante entre as vírgulas que tenho que trabalhar melhor. Se é o suficiente, se chego a revisão, se a quantidade que me resta permitirá mastigar o texto até estar satisfeito.
Minhas ações atrelam-se ao meu vício. Penso em parar? Cavouco na busca da coragem, a mesma que foi necessária para primeira tragada, para abandonar o fumo? É claro que sim, todo viciado pensa. Mas só pensamos. Paralisa-nos o sofrimento físico da ausência, da perda do suposto charme, de não ver graça nas refeições. Nós fumamos, queremos parar, temos medo de não conseguir, não nos imaginamos sem o cigarro. Somos fumantes.
Salvar texto. Vou pitar na varanda.

quarta-feira, agosto 20

Belzebu


Hoje acordei com a cachorra, atacado feito anão em comício... olhando de lado, tchê loco salivando, pronto para confusão. Vou pra rua enfiar um tapão na orelha do primeiro desafortunado que topar pela frente. Vou montar campana junto ao portão. Ai... que me atraco. É só esperar que alguém desça a rua.. Pode ser o capeta chupando manga. Chuto-lhe a bunda, corto-lhe os chifres, mijo-lhe nos cascos. Cinjo o medonho pelo pescoço, rolo com o coisa ruim até as profundas. Corto-lhe os bagos, como, engulo, limpo os dentes com o que lhe sobrar dos pentelhos, e meto a mão na china perdida mais cara e safada que lhe serve a devassidão.
O rabo mando pra são João Evangelista. Que lhe sirva como relíquia.
É, é isso mesmo, levantei ruim dos cornos. E a causa? Não tem bom motivo, só despreguei da cama desse jeito, contrariado feito guri de recado. Embestado, raivoso, enlouquecido, cachorrado, canino afiado em ventos de setembro. Se me encostar, eu mordo, estripo, tiro o couro, e para outra peleja logo me habilito. Tô tinindo por perturbação. Abro mão de uma boiada por um bom enfrentamento, e desfaço-me de outra maior ainda pra não sair até que esteja estatelado, sangrado - desamparado ou vitorioso, mas lambendo o chão. Pode ser de soco, pernada, sarrafada, pedrada, ou de quantas facas permitir o manuseio. Só não pode ser de bala, que aí perde a graça. Distanciam-se os olhos, perde-se o cheiro.
Acordei de guampa torta, azedo de verdade, com a sensação de mundo acabado. A minha língua tá ardendo, bem capaz de produzir veneno. Cuspo, ejeto, profiro, até em olho de velhinha projeto mira. Nada tem valor. Bom, só o que estiver despedaçado, estrebuchado, degolado, destruído, acabado. Tô rastejando pelas sanjas, descendo pelas gretas. Senhor leptospirose, monarca de porão.
Hoje acordei vidrado, louco de bater de pau. Sanha de chicote, lâmina fria, ponta de esporão. Tô de bola virada, envessado, atazanado, descabelado. Senhor unhas grandes de olhar vermelho, boca seca e punhos cerrados.
Hoje acordei nos cascos... engraçado, tá passando... As espáduas já vão menos rijas, os braços mais folgados, os dedos relaxados.
O teclado tá um trapo. Afundam-se as teclas, saltam as letras. Parece-me sem arrumação. Já tô mais tranqüilo, tenho mais o que fazer. Agradeço a tolerância. Livrem-se do amargor. Estão piando lá no pátio. O sol alcançou a testa.
Dando-me licença, alma mais leve, vou prosear com a bicharada.

terça-feira, agosto 19

Tempos difíceis

Embora o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o tal do IPEA, ande arvorado a tagarelar que a pobreza diminuiu, e que e a classe média ganhou milhares de novos sócios, etecéteras e blá, blá, blás, tenho dormido com a pulga atrás da orelha. Na verdade, são tantas que, vez que outra, me invadem os orifícios. Não sei se para servirem-se da cera, ou se só por atazanar.
Digo isso pelo que tenho ouvido do compadrio. Todos estão preocupados. As patroas armaram-se de facas e cortam o que vêem pela frente, o que tem causado um certo desconforto e um medinho disfarçado. Alguns admitem que têm urinado sentados e de porta fechada. As novas normas impostas pelas matronas em vistas de economizar alguns patacões variam muito, mas todas dependem do humor da mulherada. Luzes acesas sem necessidade e torneiras abertas têm dado mais confusão que de costume. Banhos demorados é gritaria na certa. Quem tem adolescente em casa escondeu as chaves dos banheiros. Telefone é severamente controlado. Algumas, mais radicais, tiram o cabo do aparelho e escondem o falante nas gavetas que filhos só mexem sob pena de descobrir que mãe também é mulher.
Até aí, não cheguei a estranhar muito, não. Mas algumas estão levando a coisa a extremos.
Conta-me um dos sujeitos que a Dona Marieta, vizinha do seu Lilica, cismou com a descarga da patente. Xixi para mandar embora, só depois do terceiro. Anota tudo na planilha. Quem fez, a que horas, e o tempo do aguaceiro que é medido num reloginho digital que ela encomendou no armarinho da Dona Mercedes. Quem faz de pé, se a água do joelho for muita, a orientação é descarregar na rua. A coisa ficou tão séria que, depois de botar ordem na própria casa, a dona deu para controlar as privadas do seu Lilica. Fica de olho espichado e orelha em pé, e até futricar na conta d’água do homem já futricou.
A vizinhança está em pé de guerra.
Uma outra, para espanto do marido, e da rua inteira que acompanha o caso, está obcecada com papel higiênico. A mulher, além de comprar agora só daqueles que arranham as sensibilidades, exige que eles durem o triplo do tempo de costume. Se ouvir queixa, embravece e manda pegar o jornalzinho que é distribuído gratuitamente no bairro. Outro dia, a amalucada estipulou que assoar o nariz, só quando for fazer cocô. A nora, que mora numa meia-água nos fundos do terreno, resolveu fincar matrícula num cursinho de origami, já que o ordenamento é aproveitar o mesmo pedaço de papel. Tá todo mundo preocupado em não fazer confusão e trocar a ordem do que deve se limpar primeiro. Seu Alaor, marido da danada, anda visitando algumas casas de repouso. Tá achando melhor que ela descanse por alguns meses.
Outro caso que armou o maior rebuliço é o desaparecimento da gataiada. Dizem os linguarudos que pra bandas da Lagoa Pequena, pros lados da chácara da dona Efigênia, tem um bocado de jaulas escondidas na mataria, e que a criançada dela até andou ganhando peso. E que o Pirulito, capetinha bom de funda talhada em goiabeira, tá até mais rosadinho. E lá isso, eu também notei. A coisa toda tomou tal proporção que chegou ao comissário. O homem tentou fazer orelha miúda pro sumiço dos bichanos, mas é tanta da reclamação que não restou outra saída se não botar dois praças na rua pra investigar o caso. Dizem que eles estão à procura de colaboradores que ajudem na empreitada, mas sabe como é... todo mundo reclama, fala, fica reinando pelos cantos, mas na hora de ajudar, ninguém sabe, ninguém viu. Até porque o delegado, de novo os linguarudos, é muito amigo da família, e mais ainda, da dona Efigênia. O pessoal já diz que as investigações vão dar em nada, e que no fundo, até é melhor que seja assim. Todos concordam que as noites estão mais tranqüilas, e que até a cachorrada anda mais quieta sem os gatos a miar.

sábado, agosto 16

Lição de casa


Lição de casa sempre foi meu pesadelo. A escola de maneira geral não me agradava muito. Se me lembro bem, já na segunda série meu traseiro coçava na cadeira. Interessava-me mais o Kunta Kintê. Tinha um guri, Maximiliano - o repetente, que podia ficar acordado até tarde. Ele assistia o seriado na TV e depois me contava.
Com o passar dos anos a coisa foi piorando. A cada série que avançava aos trancos e muitos barrancos tudo ficava mais chato. À exceção de história, geografia e algumas professoras de pernas grossas, nada me alegrava. Para piorar ainda mais as coisas o sindicato no Rio Grande sempre teve muita força, e com razão, gritava alto por melhores salários e condições de trabalho. Minha própria mãe era uma rata de assembléias, grandes reuniões que decidiam pelo sim, ou pelo não da greve geral. Era ônibus de tudo quanto é lado. Vinham dos rincões mais longínquos, de cidadelas que nunca ouvira falar. Milhares de mulheres e alguns poucos homens, chimarrão em uma mão e a bandeira do sindicato na outra, todos querendo peleia. O tempo se abria e as tertúlias gritavam por movimento. O governador biônico, um gordinho com cara de sapo e óculos grossos de lentes guaraná, já não agüentava o tranco. Em Brasília, Figueiredo dava sinais que a tropa apeava do poder. Lá se iam três meses com as escolas fechadas. Os professores tinham ótimos motivos, o problema era o retorno às aulas. Eu já não era muito chegado, com os hiatos tinha que fazer um esforço descomunal para entrar nos eixos novamente. Acho que nunca entrei. Nem mesmo em fila para subir até a sala de aula. Negava-me, chegava atrasado, reclamava, olhava enviesado com cara de ruim. Se eles protestavam, eu também podia. Greve de fila, ponto. Na adolescência, para aliviar a tensão, já que não dava para matar aula todo dia e passar a manhã fumando River 90, inventamos um jogo para a hora do intervalo. Ocupávamos duas das oito canchas, naquela época colégio tinha pátio, pegávamos uma bola de basquete estourando de cheia e chutávamos a bicha com toda força possível uns contra os outros. Dezenas de nós, espalhados pelo campo de guerra desejando um moscão para sangrar e dar dor de cabeça a direção e ao SOE.
Mas eles também nos davam trabalho. Lembro bem de uma bedel de corredor. Mulher baixa e sem pescoço, redondamente acima do peso. As bochechinhas vermelhas lembravam as de um buldogue. Estava sempre no meu pé, a infeliz. Quando não era o uniforme, era meu atraso, meu cabelo, o pé na parede, a saída demorada ao banheiro. O importante era me chatear. Quando não estava em ronda ficava sentada numa cabine envidraçada tentando inutilmente segurar as pálpebras abertas, a dorminhoca remelenta. Sua languidez se fez prisão. De saco cheio, virei a guarita, e com a parede atravancando a porta só lhe restou gritar a exaustão. A humilhação foi tanta que a pequenina pediu transferência.
Mas para aprontar, bom mesmo eram os passeios. Uma semana antes do grande dia começávamos a instigar alguns patetas. Alardeávamos que sonrisal com coca-cola dava onda e coragem para beijar na boca. Era um tal de vomitar no ônibus bem chato de agüentar. A coisa ficou séria quando trocamos o sonrisal e o refrigerante por psicoativos como o bentil, e álcool. Aquelas bolas não só davam onda, como deixavam os caras apavorados. Chegamos a ter até um pouquinho de remorso vendo a baba, os olhos esbugalhados, os sujeitos petrificados de terror, mas não achamos justo quando os passeios foram banidos. Sim, éramos o diabo, ou se preferirem, o mau gênio do desagrado, a energia e vivacidade encarnando a desordem e o caos.
As patas ganharam as léguas, e com o andar da carruagem, mesmo que trôpego e descompassado, os butiás foram se ajeitando. Acabei descobrindo fórmulas melhores de personificar o vazio. O tempo, metido a brincalhão, me fez professor, e hoje tenho um puta medo que meus filhos façam a metade do que fiz. Ajudo na lição de casa de minha filha e tendo fazer disso um divertimento. Mas continuo tendo problemas com a escola. Outro dia não olhei um enunciado direito. Ela me dizia que não era daquele jeito. Respeitosa, a coitadinha foi por mim. Errou a questão. Ela tem sete anos e está na segunda série.
Ai, por que plagas navega o Kintê?

sexta-feira, agosto 15

Cracóvia


Não dou muita bola pra esse negócio de copa do mundo e olimpíadas. Quando as competições acontecem do outro lado do mundo então, nem uma peteca. É muito fuso horário, reportagens bestas e esporte chato. Imagina ficar acordado até as duas da manhã para ver uma regata daqueles barquinhos que parecem com uma banheira de desenho animado. O Leôncio vai soprando a vela e o Pica-Pau enchendo o saco atrás. Duas da manhã, sofá afundado, e na TV um baita jogo de vôlei de praia. Ou ainda, uma partidinha de pólo aquático seguida das eliminatórias de tiro de arminha de pressão. Se o objetivo fosse acertar camundongos como a gente fazia quando guri a valer um copo de groselha com gelo vá lá, até seria divertido. Mas ficar tentando furar cartolina (!?), tenha dó.
Complicado também é agüentar a cobertura das nossas televisões. Pela empolgação e ufanismo de nossos comunicadores até parece que o Brasil está respirando os jogos olímpicos. Que nada, as pessoas aqui continuam mesmo é no rame-rame indecente de cada dia. Oxalá tivessem elas força para ficar acordadas depois de um dia de labuta que no final do mês nunca compensa. Pelo menos não é a copa do mundo, quando a firma concede um intervalinho. Se fosse, ficaria todo mundo sentado entre as máquinas espiando uma televisão velha com bombril na ponta da antena. E agüentar a mulher do patrão abanando no telão do estádio com um nozinho na camiseta e um “bauchilom” modernoso? A turma logo repara que ela vai a arenas esportivas desde pequena e é tarada por cachorro-quente com mostarda de mentira e querosene disfarçado de conhaque.
Bom, mas é a olimpíada, e por graças, não tem intervalinho nem patroa aloucada representando a firma.
Mas tem, nunca é tão simples, a mania nojenta dos jornalistas de ficar batendo na tecla - “é do Brasil”. É coisa nenhuma! Os atletas que estão em Beijing chegaram lá por conta própria. Treinaram descalços depois do expediente. Pegaram quatro conduções por dia durante anos para adestrarem-se. Fizeram vaquinha para conseguir material esportivo. Venderam a televisão e o três em um para viajar e participar das competições. Perguntem lá para menina do judô que ganhou o bronze o que o país fez por ela? Quem sabe para as gurias do futebol? Ou até mesmo para os atletas dos esportes que se afinam historicamente com a classe média. Dá-me uma raiva ouvir “é do Brasil”, ah... se me dá.
E tem um monte de abostados que ainda quer fazer olimpíada aqui. A tal da Rio dois mil e não sei quantos. Eles não conseguem realizar uma eleição municipal e querem fazer olimpíada? Mas vai ser bem legal. Os beleguins e traficantes firmarão um acordo tácito de paz. Eles vendem pó e pedra mais na manha e as forças de segurança dão um tempo nas operações de repressão e vão tomar sol na zona sul com a desculpa de proteger a turistada dos pivetes. A Rede Globo vai mostrar ao mundo a cidade tão linda que o Rio de Janeiro é. Serão imagens sobre imagens com um tema musical de arrepiar os cabelos. Aquela estátua de braços abertos, aquela baía linda e cheirosa lá pra baixo, o verde das matas e cemitérios clandestinos da Tijuca, as praias com cocô de sal e as meninas de tanga. E o pessoal do samba, é claro. Afinal música brasileira é samba, ou não é? Em vez de pensar em fazer esse negócio aqui deviam investir cinco por cento do que seria gasto em centros de treinamentos de excelência. Quando a gente conseguir ficar na frente do Vietnã no quadro de medalhas quem sabe dê para começar a pensar em tal despautério.
É por essas e por outras que acabo não vendo muito do que está acontecendo lá pra banda oriental. Todavia, vou me informando sobre as coisas devagar, e aos poucos, vou criando simpatias. Sou extremamente simpático, por exemplo, ao time feminino de vôlei da Polônia. Que time! Noves fora os nomes que nem vou tentar reproduzir aqui, as gurias são demais. É tanta perna comprida e rostos bonitos que a Cracóvia deveria ser aqui. A julgar pela beleza das raparigas suponho que depois dos guetos e da gestapo os poloneses se esmeraram tanto em viver que o resultado só poderia dar naquelas belezuras todas. Avante, meninas da Polônia.

terça-feira, agosto 12

Sobrinhos

Dunas da Joaquina - Florianópolis
Tenho um sobrinho que deve ter uns treze anos. Foi o primeiro, e para aumentar o suspense, ao nascer resolveu dar um bruto susto na família inteira. Chegou ao mundo com a buchada para fora, mais precisamente com o intestino. O médico que acompanhou a gestação da minha irmã pediu meia dúzia de ecografias, mas não enxergou o problema, estava mais preocupado em mostrar o pintinho, os dedinhos, e esqueceu de olhar direito os exames. Saiu da sala de parto para UTI, e de lá para a de cirurgia. Com as tripas de volta no lugar esperamos ansiosos o primeiro punzinho e a meleca que a galope normalmente chega logo atrás. Nunca uma cagada foi tão comemorada. A única seqüela que ficou foi a falta do umbigo, que cá pra nós, não faz falta nenhuma. O medonho agora até ganha dinheiro com isso. O golpe é mandar um amigo apostar com os desavisados que conhece um cara que não tem o olho umbilical. Selado o jogo, ele aparece com a blusa erguida e um sorriso na cara. Invariavelmente os golpistas faturam a merenda na hora do recreio.
Olhando pra ele hoje precisa de ver que belo mancebão que deu. Bonito feito ele só. Também é um guri bom... educado, gentil - e as gurias que não são bobas botam o olho nele ligeirinho. Por sua vez, ele que não é besta nem nada só quer saber de beijar na boca. Tá naquela fase em que as cabeças confundem-se, uma pensa pela outra e as duas só pensam na mesma coisa. Minha irmã que é durona feito minha falecida avó Ondina tá pagando os pecados. Já o meu cunhado dá a maior força. Cá eu, fico também orgulhoso, admito.
Na casa de praia agora é um entreveiro só. Como na cidade não se pode mais dar a liberdade que tivemos por conta do medo que nos castiga a cada esquina, é no litoral que as asinhas exercitam o vôo.
Enquanto a gente joga perfil, máster, general, palavras cruzadas e emborca vinho disfarçando o que o tempo tem feito conosco, o piá corre a praça. Chegam-se as dez, as onze, e vai bater o fim do dia e nada do guri. Minha irmã começa a olhar pro meu cunhado que faz de conta que não é com ele. De supetão ele sai porta afora e retorna quinze minutos depois:
- Vai ficar mais um pouco, eles tão lá.
O “tão lá” significa, se bem me recordo quando eu ficava lá, que tem um monte de guri em volta de um monte de guria falando um monte de bobagem com um monte de terceiras intenções. Os galinhos se empurram e se socam, debocham alto uns dos outros enquanto elas cochicham, trocam olhares cúmplices e passam as mãos nos cabelos. Às vezes parte do grupo das meninas sai sem aviso, vai pra lugar nenhum. Gurias fazem isso, simplesmente saem. Eles ficam loucos. Os mais interessados com a ausência ficam indóceis, falam mais alto e se empurram mais - buscam um canto, se afastam para palestrar sobre o que fazer. Na maioria das vezes antes que eles terminem de confabular e cheguem a alguma conclusão elas já estão de volta.

Se as gurias simplesmente saem o bom é que sempre voltam, e quando retornam estão ainda mais misteriosas, mais bonitas e cheias de segredos. E é aí que a coisa fica ainda melhor. É o tempero, a pimenta, o tambor no peito que vai suscitando o desejo, a paixão, e por fim o amor.
Mas isso o guri, o mancebão bonito, ainda está aprendendo.

segunda-feira, agosto 11

Chaira e Chambre



Um leitor do blog depois de passar pelo texto "Vagabundagem" mandou um comentário e perguntou o significado das palavras "chaira" e "chanbre". A princípio poderia ser grosso e mandá-lo procurar no dicionário. Mas como é meu amigo e camarada, e também ando a cata de leitores, lá vai:
A chaira, apesar do nome engraçado e de suscitar para alguns mentes sujas interpretações sacanas, nada mais é que um instrumento usado para afiar facas. Já o tal do chambre é aquele roupão que alguns gostam de usar depois do banho.

domingo, agosto 10

O falecimento do mico

Eu, Cora, Urso, Sol e Pipa - Morro do Lampião

Moro no Campeche, bairro da ilha de Santa Catarina. Mais especificamente entre o mar e o morro do Lampião. Estou cercado pelo verde nativo.
Meu vizinho, um cara bacana, dono de casa como eu, é sensível além da conta, amante da bicharada. Fora os cães, que são uma penca, ele divide o pátio com cobras coral que descem do morro, e que ele se recusa a expulsar. Outro dia ele me chamou para ver uma das grandes, anéis lindos. Quando eu cogitei em matá-la quase que arrumo briga. Fiquei quieto e não quis comentar a morte do weimaraner que criava. Ele e a esposa diagnosticaram ataque cardíaco, mas agora começo a duvidar lembrando do inchaço no pescoço do animal.
Já pelo alto, ele costuma alimentar uma família grande de micos. Os macaquinhos chegam até a varanda do segundo andar através do bambuzal que se estende da casa até a primeira trilha do Lampião.
Vai que um bom dia, me chega ele atarantado, suor na ponta do narigão, quintal adentro pedindo socorro. Precisava do carro pra levar um mico pro hospital. Acalmei o sujeito e assuntei do ocorrido. Diz que estava alimentando a macacada como de costume. No meio do alvoroço um pequerrucho despenca das costas da mãe e cai no pátio. Prato cheio para o Bob, guaipeca ligeiro que em uma dentada deu conta do filhote.
Quando eu e mais Cora chegamos ao quarto, estava o bicho lá, estatelado no travesseiro, de barriga pra cima, pernas e braços abertos, em choque, mas ainda vivo. Fã do Animal Planet,
vi que a causa era perdida. Ele ainda tentou entre lágrimas, transbordado pela culpa, fazer massagem cardíaca com a ponta dos dedos grossos. Depois juntou as duas mãos à boca como quem vai chamar a cotovia e colocou-as junto à fuça molhada do moribundo para oxigenar a vidinha que ia embora.
Para não passar como o ruim da história achei melhor dar uma de SAMU. No caminho da emergência ele lamentava a tragédia em soluços. A Cora no banco traseiro de olhos esbugalhados não conseguia equacionar se aquilo tudo era normal, ou se a coisa não era pra tanto, e cerrava os lábios sem saber se em solidariedade ao vizinho ou ao macaco.
Na clínica, a veterinária sem entender tamanha confusão achou melhor encaminhar o paciente logo ao consultório. Minutos depois, com o auscultador enfiado nos ouvidos declarou o falecimento. Meu doce vizinho estava inconsolável. Insistiu, pediu que ela o ressuscitasse que tentasse mais uma vez. A moça, meio incrédula, respirou fundo. Quando ele rompeu o silêncio funesto que se fizera já conformado da morte, mas não do ocorrido e perguntou se deveria levar o cadáver de volta e entregá-lo aos cuidados da família a mulher ficou confusa, e procurou amparo na Cora que exigiu complacência.
Mais esforçada que pacienciosa, e desejando ter prestado mais atenção nas aulas de fenomenologia sociológica geral dos animais e seus ritos funerários, ela disse que não, que era melhor deixá-lo ali mesmo.
Já em casa, minha pequena ponderou: “Taí um amante dos animais e um cara com muita consciência ecológica”.

sexta-feira, agosto 8

Saudades da Pané

Dia desses, minha prenda me levou pra passear. Demos um pulinho em Buenos Aires. Pulinho modo de dizer já que esse negócio de aeroporto e avião exige mais esforço que salto triplo.
Começa que a Anac e as companhias aéreas resolveram que atraso de uma hora não é atraso. Só um minuto depois de passados os primeiros sessenta que a coisa é considerada como tal. Tu te achegas no balcão e tá lá a moça, sorrindo, com toda a cara de pau do mundo, e diz que tá tudo certo. Caso tu resolvas perguntar sobre o atraso ela te responde: “Não há atraso, senhor, o vôo está no horário”. E vá tentar argumentar pra ver só. Brigar então, nem pensar. Ela pode cismar de chamar aquelas pessoas gozadas de paletó preto que são capazes de te prender por desordem.
A Janaina me contou que há que se ter respeito, pois eles são policiais disfarçados.
Bom, ia tudo bem, apesar da pontualidade duvidosa, até a funcionária pedir minha carteira de identidade que algumas semanas atrás tinha sido lavada com uma calça de brim que gosto demais. A moça encasquetou com o documento. Puxava o plástico, passava o dedo na foto, olhava pra minha cara pra ver se ela estava embaçada igual. Por fim deu o veredicto: “O senhor não pode viajar”. A Janaina quase teve um troço. Estressada... e eu, que não sou de me mixar, já mirava a porta de saída pra voltar pra casa que por si só já é um mundão. Pensei em apresentar a carteira de trabalho, documento que até brigadiano respeita, mas achei melhor não.
Implora dali, chora daqui, a Janaína, que se destaque, e eis que se aponta a resolução: hoje em dia tem um negócio nos aeroportos que se usa para asfixiar bagagem. Acho que tem haver com a Vigilância Sanitária. Uns meninos enrolam as malas com um plástico de maneira que se assegure que elas cheguem ao destino mortas e pouco arranhadas.
O garoto com uma perícia estupenda pegou o RG e o meteu dentro de uma máquina que lembra um mimiógrafo, só que sem cheiro de álcool. Pronto, estava lá a danada da carteira plastificada, e eu, apto a viajar.
Não sei por que tanto alvoroço.
Só que chegar dentro do avião não significa que o magnânimo logo se vai. Normalmente a gente precisa esperar mais um pouquinho. E aí é que a coisa começa a ficar boa de verdade.
Começa pelo assento. O pessoal das empresas deve achar que a gente é feito playmobil - dobra, encaixa e pára quieto. Que a estatura média da população brasileira fica entre o Nelson Ned e a Bruna Lombardi – por onde ela anda, hem?, e que todo mundo tá a fim de um pilates. Os joelhos da gente pressionam o banco da frente, e as costas, da lombar até em riba, são projetadas em direção ao babador da cabeceira do assento dianteiro que se usa para limpar a boca depois da barrinha de cereal.
Enquanto a aeronave não decola o único divertimento é ficar apertando os botõesinhos acima do cocuruto. Tem um que quando a gente aperta faz dimdon lembrando as campainhas da década de setenta e, logo depois, aparece um rapaz.
Quando enfim se ganha os ares, quem tá sentado ao lado corredor tem de ficar atento ao carrinho do bufê. Ele ocupa todo o espaço de trânsito e se o vivente no intuito de acomodar-se melhor deixar um cotovelo pra fora corre sérios riscos. Conheço um cara que perdeu uma rótula numa brincadeira dessas. Mas a geringonça se justifica pelo lanche. Eu ao menos fico espichando o pescoço, espiando, louco pra que chegue a minha vez. Preciso me conter pra não apontar o dedo e ficar parecendo que minha mãe Teresa não me deu educação.
Em vôo internacional eles servem um sanduba bacana, não tem esse negócio de bolachinha d’água e amendoim. O pão vem com queijo, mortadela e uma batata palha porreta. É tão bom que quando a gente acaba de comer já não se sabe mais o que é obturação e o que é bolo alimentar incrustado nos dentes. Nada que a coca-cola, fanta ou suco de caixinha oferecidos não resolvam com uns bochechos. Bom demais.
Dizem que para quem tem grana a coisa é ainda melhor. Gozado, eu achava que para andar nesses monstrengos tinha que ser ter grana. A queda da qualidade do atendimento deve ser culpa da classe média que com mil reais ao mês anda fazendo festa.
Se o serviço anda ruim, eu não sei, mas acho que já andou pior.
Certa feita eu estava no Galeão esperando um vôo da Transbrasil para Porto Alegre, e um pouco antes de embarcar vi um cara em cima de uma escada enfiado dentro da turbina com um martelo e uma chave de fenda. A moça, sempre ela, me disse que era procedimento padrão, que estava tudo bem. Pensei que procedimento feito aquele era pra dar jeito em Opala e Chevette quando começavam a engasgar. Na dúvida, troquei o vôo.
Bom mesmo devia ser no tempos da Pané.

quarta-feira, agosto 6

Vagabundagem

Talvez vocês não saibam, eu sou um dono de casa. Minha mulher trabalha pra cacete e eu fico aqui, só no bem bom. Levanto cinco da manhã para levar minha prenda pro centro. Ela trabalha, lembram? Daí volto pro Campeche com a cria no banco traseiro. A coitada vem ferrada no sono. Abro a casa e olho o dia. Separo a roupa. Meias e calcinhas de montão. Remexo mais fundo no cesto, mais calcinhas e meias de montão. Mais fundo, roupas de um hermetismo insano. Nunca vi tanta costura torta e pano sobrando na minha vida. E se paga por isso? Bom, ela trabalha.
Com a roupa na máquina – afinal sou um cara pós-modeno, tiro carne do congelador, separo o feijão, e já toco a ferver umas batatas que um pirê sempre é bom. Nosso pátio é grande, três cães chafurdam por lá com gosto - registre-se que neles eu mando – então me resta a varrição, já que os ventos sopram sempre pra dentro. A cria é legal. Quando acorda faz os temas, desenha, pinta, e lê feito gente grande, me dando tempo e sossego pra lida. Trabalho com estilo, é claro. Agora, para que tenham idéia, estou com uma vassoura bem descolada. A Cora foi ao mercado comigo e escolheu uma laranja que atarraxei a um cabo verde. O problema é o tamanho do cabo. Vou recomendar aos fabricantes que aumentem a centimetragem. Pensando bem, desse jeito dou idéia para quem já anda com as burras cheias. Talvez seja melhor investir num negócio. Montar uma fábrica de vassouras para homens, por exemplo. Tô fodido mesmo!
Chão limpo, vez do pano. E lhes digo, já não fazem sapólio como antigamente. Tem cheirinho de tudo, do clássico pinho, até limão, maça, lavanda. Sem falar nas combinações esdrúxulas. Outro dia quase tomei um troço desses achando que fosse suco. Quando o chão começa a lembrar um pomar, tá na hora de estender as calcinhas e começar a cozinhar.
Meto umas duas bananas na pequena, libero a pressão da panela e esmago as batatas. Limpo a carne com a cachorrada do lado que assim já vou me desfazendo do sebo. Pego a chaira e me sinto o tal. Mas no revertério... as calcinhas, as calcinhas, e um tanto de pano torto. Dou um jeito logo nisso, para depois jogar os bifes com manteiga na frigideira grande. Tenho uma técnica para estender a rouparia de modo a não precisar passar. Passar(?), me nego. Só me faltaria daí comprar um chambre mulambento e uma dúzia de bobes. O problema é que só eu acho que a técnica é boa.
Pois bueno, com a Cora banhada e almoçada, vem à tarde a aprochegar-se, e eu, ainda não postei nada, mas isso é outra conversa.

terça-feira, agosto 5

Inviolabilidade

E esse negócio agora de inviolabilidade dos escritórios de advocacia.
Vai ser assim:
- Com sua licença, doutô. Eu e meu parceiro aqui – oh... Chagas, chega mais. Tava falando pro doutô, que a gente vai precisar fazê uma varredura no escritório dele.
- É, os home lá tão incomodando, Cardoso? Então o senhor vê aí que dia fica melhor pra gente vim e não incomodá além da conta.
- É só marcá. Deixa uns papelzinho, uns bilhetinho escrito à mão mesmo fodendo com alguém que o senhor queira. Joga por cima da mesa, que a gente leva e fica tudo certo.
- É melhor amassá e jogá no lixo, fica melhor.
- O senhor tem nosso celular?
- Oh Cardoso, celular não dá, ! Bicho bem burro. O senhor tem Orkut?

O projeto de lei aprovado pelos deputados é de autoria de Michel Temer ( PMDB).
Será que o Lula sanciona?

segunda-feira, agosto 4

Bola da vez


Incrementar o turismo, o tal de sustentável, pelo menos no discurso. Criar opções para atrair cada vez mais, quem tem grana – ancoradouros, marinas, ampliação do aeroporto, blá,blá,blá... Meu medo é que o falatório, essencial por ampliar a discussão e abrir novas janelas de possibilidades teime em restringir-se no como fazer para atrair gente. Não seria conveniente também projetar e estabelecer políticas que amenizem os impactos do turismo sobre a população local? Fazer com que os visitantes entendam, por exemplo, que a ilha, antes de ser um destino de descanso e gozo, é uma cidade que pulsa com seus habitantes? Não seria bom pensar em campanhas para conscientizar os visitantes que não dá pra agitar noite adentro na casa alugada no Campeche pelo fato de os moradores não estarem em férias? Que não se pode andar a vinte por hora circundando o canto da lagoa para apreciar a paisagem já que o tráfego para prestação de serviços também passa por ali? Agora, a bola da vez é o turismo gay. Bacana! Sabidamente são pessoas com condições e predisposição para torrar dinheiro durante algumas semanas de férias. Mas é bom avisar pra segurar a onda, do contrário, alguns aloprados ferram com toda a outra boa gente, independente da opção sexual. Ano passado na trilha entre Molhe e Galheta tinha desfile de pênis. A praia é de naturismo, não de pegação. E na trilha, como diz a placa que tem por lá, é proibido se pelar.

sexta-feira, agosto 1

Turismo e espaço


Praia da Galheta - Florianópolis

A ilha é de todos. Bem vindo sejam os que chegam para dias de sol e praias acolhedoras. Que venham as famílias com seus bagageiros tortos, barracas e pimpolhos – sem cachorros e gatos que aqui já há o bastante. Mochileiros com lenços a testa, surfistas com suas planondas resinadas. Enfim... homens, mulheres, gays e toda sorte de androgenia de tempos pós-modernos. Mas deixem, por favor, suas bandeiras, e alguns hábitos, em casa. A ilha é pequena e o espaço comum. Ondas são feitas para dropar e não para serem disputadas a braço e xenofobia. Lixo, para ser jogado no lixo. Ruas, para serem compartilhadas por carros, bicicletas e pedestres. Dentro dos bairros, também por crianças, que aqui ainda podem andar em bandos fazendo alarde, gritando, trepando em árvores, pulando muros, pintando alfabetos.
As praias daqui são feitas para serem desfrutadas, e os caminhos, para serem trilhados... por todos. A ilha não é, definitivamente, o lugar para desaguar excessos de comportamentos pessoais latentes. Deixem as bandeiras em casa.