segunda-feira, abril 6

Gárgula


Palavras, assim como gente e bicho, e tudo mais que se movimenta e anda, vivem sob a cruz das castas. Algumas são campônias, outras operárias. Muitas são peões em batalha; tantas outras, políticas matreiras. Há as que ao mundo dão o movimento, enquanto outras sentenciam à estagnação. São férteis, são estéreis. São labuta, são preguiça - a vida e a definhação. E se ainda muito importa o papel que cumprem e os sentidos que todas elas alavancam, no final, ou são nobres, ou são plebeias, e ponto.
O Insólito, por exemplo, tenho certeza, é senhor de muitas almas e alqueires. Veste casaca aveludada e botas de bom couro. Com seus aneis, assenta-se sempre acima do passo da rotina.
Quando topei com ele pela primeira vez, fiquei impressionado por demais. Seu tom me deu a impressão da volatilidade. E ao descobrir que na vida nada mais faz além de encarnar o inesperado, a recusa ante a regra, salivei abobalhado.
Lua cresce, lua mingua, as melenas entordilhando, voltei ontem a me inclinar em sua reverência.
Transtornado pela prisão ventre de minha filha mais nova, resolvi entrar no google para assuntar se o leite Ninho entope ou não entope os intestinos. Achei que não ia dar em nada, “bobagem minha”, pensei. Mas como o Desespero também é de linhagem antiga e nobre, fui em frente. Ora pois, quanto assombro. Num clique estava lá eu num fórum de discussão sobre barriguinhas duras e estufadas. Mães zelosas de todos os cantos com suas dúvidas, certezas, lamentos, procurando um desentupidor para os rebentos. Uma mulherada que só vendo. Fiquei de longe, só de bico, na esperança de que alguma delas solucionasse o meu problema sem que precisasse me manifestar. Como a resposta não vinha, ofereci a todas meus cumprimentos e pesar pelos seus e fui levantando a questão:
- Alguma das senhoras sabe se o leite Ninho endurece a merda e tranca o rabisteco?
Para quê? Foi um alvoroço só. Nem tinha acabado de digitar a interrogação e o rugido ecoou:
- O senhor quer dizer endurecer o cocô? Constipar o nenê?
Como não sou bobo nem nada, entendi o puxão de orelhas, e não gostei. Afinal quem é ela para dizer como devo externar minhas aflições? Ora... Retruquei de pronto:
- É isso mesmo, minha senhora. A merdinha mole vira um monstro cagalhão prevalecido que deveria procurar alguém do tamanho dele para brigar? A senhora sabe ou não sabe, afinal, se é o leite Ninho o mandante da peripécia?
Arre, que peleia comprei. Mães indignadas congestionaram minha caixa de entrada:
- Seu grosso... Não tem vergonha de falar desse jeito?
- Tenha mais respeito, escreveu outra.
- O senhor está brincando com a desgraça alheia e, ainda por cima, de crianças, seu medonho, dedilhou mais uma.
Emputeci:
- Cacete! Oh... Pecherecada louca!?, digitei já meio enfezado.
- Tô com uma guria de seis meses que não caga têm três dias, e vocês com todo esse xingamento? Será que dá para responder se com o leite Ninho o cocozinho do bebê fica sequinho e durinho, e o coitadinho acaba entupidinho?
- Mas por que o senhor não explicou isso antes? Pricisava esse estresse todo?
- É, precisava?, emendou logo outra.
- Deve ser pai solteiro, desses independentes. No mínimo adotou achando que ia ser fácil.
- Gozado isso, né? Será que ele é....
- Senhoras! E o leite Ninho?
- Disso eu não sei, mas conheço uma receita infalível para desamarrar os intestinos.
- Eu também, atalhou uma de volta.
- Ah, mas melhor do que a minha não deve ser.
- Pois aposto que é.
- Duvido.
- Até parece...
- Parece o quê?
- Que tá se achando, a sabida.
- É pena eu não estar aí, daí ia ver só uma coisa.
- Que coisa, que coisa? Dou-te o endereço e te espero, só quero ver então....
- Senhoras... Senhoras....
- E tu não te metes, bobalhão. Vai-te embora dormir, chatonildo. Leite Ninho, leite Ninho... Parece um bebezão choramingando. Não sabes falar outra coisa?
Como a discussão foi adiante, resolvi aceitar o conselho. Desliguei o computador e peguei o rumo da cama.
Já deitado, joguei a vista perpassando o breu até o tronco mais alto do pé direito. Na forquilha, acocorado feito um Gárgula, ria o nobre Insólito, mangando de mim.