segunda-feira, novembro 29

A vida útil, apesar do tempo - Cartas I - O Encontro



A palavra no rosto de qualquer superfície dura.
Sobrevive nem que seja por pirraça, teima - e empresta vida ao tempo.
 Diferente de quando borboleteia ao vento misturando-se no farfalhar do caminho perdendo força,quando não o sentido. Letrinhas apartando-se do conjunto.
Mas se martelada em rocha sólida, pintadana luz da manhã,  torna-se irmã do tempo.

Eu de volta, de novo em alfabetos tortos, querendo chegar a ti.
Quanto aos detalhes que perdi ao longo dos dias, e que agora o embaço das horas turva, pouco importa. Não é o que vivemos, mas sim o que sentimos ter vivido.
Não há como fugir do que escurece o entendimento.
É o incerto – a bebedeira e a lucidez de quem afunda o pé no chão e caminha.
Agora que estamos distantes, embora goste de pensar que nunca estiveste tão perto, mastigo a lembrança do suor depois dos meses de negaceio. Me atirei em tua ravina como um lobo uivando além da cordilheira, fazendo ecoar a lascívia dos  desejos sem dar-me conta que os paredões nevados, pela altitude, e pelos quereres, são suscetíveis a avalanches.
Atarantado com o rugido do deslocamento criado por minha impaciência, ainda que assustado, indócil... rodando, bramindo, tranformado em catavento, me agarrei a delicadeza e procurei teus olhos.
Escarafunchei em meu peito embrutecido as fábulas que vivi e fui.  Me desarmaste com a descoberta de que o rude em mim está muito próximo do delicado.
Nunca havia ficado tão em pelo.
Fui teu assim.
Apontaste o caminho me devolvendo os canteiros que achava estarem secos, perdidos, tomados por urtigas, emaranhados num cipoal sombrio, sem fim. Foste o mateiro que mira a porta do João-de-Barro, protegendo-me do vento.
Foste meu pála, meu poncho, o cobertor em minhas orelhas, a lã aquecendo meus pés.
Te ergueste da linha do areial.
Teus olhos foram minha bússola, teu sorriso o mapa reconduzindo-me as indiossincrasias, teus lábios, a vela rósea apontando o curso.
Teus dentes de pérola despertaram a leveza que havia ficado perdida.
Me devolveste o olfato, o tato, o sabor.
Alarmaste os sentidos, a vontade de ser melhor.
Eu quis te dar a minha vida.

Hoje não é sábado, é uma manhã de quarta.
Sonolenta, corpo quase espreguiçado, olhos de retorno ao mundo.
Beijei teu ventre na aurora.
Junto do armário, horas antes, quando te toquei e corri as léguas do teu pescoço, e tuas pálpebras cerraram-se, e tuas espáduas arqueadas estimularam meus lábios, quis parar o tempo.
Mas o mundo gira, empurra os ponteiros para adiante.

Nada para, estanca, freia.
As águas seguem o seu peso na gravidade.
Correm pelo leito, por vezes inundam os campos.
Fazem das planícies os charcos que servem de repouso a vaidade do firmamento.
E que bom que não para. Que bom que não estanca.
Só assim pude ouvir: “quem bom que você está aqui de novo”.
E depois, dentro: “que saudades senti.”
E a noite foi surrupiando as horas, levando nossas mãos ao entrelaço dos dedos na madrugada.
Senti a tez da noite aveludada em teu corpo molhado.
Depois dormir na quentura de tuas pernas.
Olha o sol...
Bom dia, Clarinha.


Continua.....