sábado, janeiro 29

Felicidade


Eu sei sobre muitas coisas.
Que Baudelaire foi um comedor de ópio, por exemplo.
Que Neruda amava o Chile, que Henry adorava June, e que o meu vizinho é um Bambi
Sei também que basta a um homem viver um só dia para que ele tenha memórias para o resto da vida. Foi Camus quem disse isso enquanto empurrava um cara pelas ruas de Argel.
E sei ainda, que ao encarar Tolstói, nos fodemos de vez – É que os homens são incapazes de vislumbrar as manhãs de primavera, “para eles só é importante e sagrado aquilo que inventam para instrumento de mútuo engano e tortura.”
E para ferrar com tudo eu sei que nos meus bolsos ando carregando coisas demais, e entre elas, a certeza de que o que eu sei não vai mudar a vida de ninguém, muito menos a minha. E o que eu digo, não tem a menor importância, mesmo.
Acho melhor então esvazia-los, talvez todos nós devêssemos.
No que me diz respeito, tornar-me-ei um idiota.
Os idiotas não sabem que são idiotas. Conheço uma penca, e eles são quase todos felizes.
Talvez fosse melhor para nós assim.
Faríamos um cursinho para aprendermos as sendas de um suicídio bem planejado; pediríamos ao ébrio para tornar-se o mestre; imploraríamos ao ignoto que elevasse além das colinas a sua gagueira de períodos prontos e premissas inseridas por lobotomia.
Viveríamos sob a égide da estupidez, mas também do seu bom senso. Sim, e o que é que tem? Minimamente seríamos menos tristes e dormiríamos mais e melhor, apesar da saliva azeda e da fedentina na fronha.

É claro que existem outras soluções para vivermos mais seguros, resolutos de nossa significância, importância e grandeza. Mas nenhuma garante a leveza da idiotice, além de serem complicadas. E como bem sabemos, costumamos desistir quando as coisas começam a complicar-se, só não admitimos. Preferimos acreditar que os caminhos do subterfúgio são traduções de nossa sapiência.
Mas vejam bem, chegar ao nirvana da idiotice, para alguns, pode não ser coisa tão fácil. Tornar-se um bobalhão exige ponderação, opções, astúcia, conclusões, e um sistema em constante evolução que iniba ponderações, opções, astúcia e conclusões.
É imperativo também que se varra a memória – um grilo falante - para uma vala tão funda onde nem os porcos sintam-se a vontade para chafurdar.
Sem memória, sem o cheiro de nossas fezes, tudo fica mais fácil.

Difícil?
Ora, pois, não desanimem tão rápido, tenho cá a solução: bolinhas.
As bolinhas nos alijam da tristeza, da dor, da responsabilidade. E quem não chora de verdade, quem não fornica com o doído e não se lambuza com a própria merda, dificilmente pensa. E não pensar é condição primeira para quem quer tornar-se um idiota.

É claro que existem contra-indicações, e elas são óbvias: a quem não chora não é dada as variações da luz do dia, portanto da percepção, ainda que fugas, do belo.
Como todo bom abobado não sofreremos. No entanto nunca, por nem um clarão sequer, nos será dada à certeza, ainda que ligeira, de comunhão com o mundo de verdade, da beleza, do que vale a pena, por fim.
Mas se chegarmos ao nosso intento não saberemos disso, não é mesmo?

É... Bolinhas são legais. Com elas poderemos fingir, fingir, fingir...

Mas olhe, lá....É preciso tomá-las todo dia, e com o passar do tempo, sempre em doses maiores. Do contrário a abstinência nos jogará em um limbo perigoso. Um choque de realidade poderia ser fatal. Ele pode esquentar a tal ponto a gelatina que terá se tornado o nosso cérebro, que ela esvair-se-á pelos ouvidos até que os nossos crânios enrugarem como uma ameixa seca.
Mas nós também não nos daremos conta disso, não é mesmo?

Mas e tu, continuas aí a ler. Deus meu...Eu já disse que o que eu sei e digo não têm a menor importância. Não desperdiça o teu tempo aí pensando. Deixa de ser besta. Esvazia a tua cabeça e teus bolsos.
Engula uma bolinha.

sexta-feira, janeiro 28

Crueldade



Cruel foi Pizarro e depois Custer, espalhando cobertores de bolhas e febre.
Cruel foi Madre Tereza ao prolongar a vida desgraçada do desgraçado.
Cruel foi Gandhi ao incitar muçulmanos e hindus
A marchar em direção as linhas de perucas brancas e coletes vermelhos..
Cruel foi a minha mãe ao usar mertiolato em detrimento
Do mercúrio para desinfetar e cicatrizar minhas feridas.
Cruel é quem impõe a canga ainda que para
Carregar o trigo até a criança que vai espichando sob as telhas da casa.
Cruel é quem borrifa o inseticida nas folhas da joaninha,
Nos troncos da cigarra, nas trilhas da saúva.
Cruel é quem desaloja a pupa do roda forro para ela não atrapalhar
A simetria das linhas da sala de estar negando a vida a borboleta.
Cruel são as opções –
O acerto e o erro.
Cruel é a covardia do medo da escolha.
Cruel é não ter como saber se a escolha do agora será pujança ou desgraça amanhã.
É não poder retornar ao ontem para redirecionar o logo depois e o mais adiante.
Cruel é nascer sob a condição de morrer.
É estar vivo sob as ladainhas de como se deve viver para bater as botas e reviver.
Cruel é ter que andar descalço no asfalto,
Ler a placa de “Não pise na grama”,
Ser educado por apostilas.
Cruel é furar as orelhas da guria que nasceu e logo depois afoga-la por batismo.
Cruel é estar exposto aos carrapatos, aos mosquitos, as mutucas,
Ao parasita lambedor de sangue -
A toda a gente que chupa o teu sangue e te rouba a alma.
Cruel é o enganador, o medroso, o mentiroso.
Cruel é fazer o outro sofrer.
Cruel foi ter feito o outro sofrer.
Cruel foi ter dado as costas a um grande amor.

quarta-feira, janeiro 5

Mãe, Irmãos, e uma desgarrada pelo mundo

Irmãos, mãe, meu pai morto, como eu andei distante. Tão distante que desconfio ter nascido longe ou descrente de deus.


Mas vou dar mais uma chance para o carinha.

- Se tu estás além dos platôs do universo, se tu és o átomo, a matéria bruta, o bafejo do pensamento, a mudez do verbo - se tu me és, agora te mostre. Se a minha vida boceja moribunda pouco importa. Já vivi meus sorrisos, já enterrei minhas tristezas. Distribuí o suficiente da água e do fogo. Minhas boas intenções e patifarias não sujeito a ti - as guardarei para mim. O que quero é que te reveles não me estendendo a mão, mas sim encouraçando a quem para ti murmura ladainhas e pulsa por vida.

Se estás por aí num lapso do tempo, numa folha, em um peido atravessado, em uma cólica impúbere, então leve minha mãe além do século. Continue a fazê-la a acreditar que lhe é possível subir em telhados, podar espinheiros, remexer na bolsa procurando moedas e as chaves do carro em frente do flanelinha, impunemente. Se não botares o dedo nisso, então não existes.

Irmãos, o que nos é importante? Nossas crianças que carregam o nosso nome? A esposa, o esposo? A pouca umidade relativa do ar, o pessegueiro que exige sacos protetores para seus frutos? Dentes brancos e couro sem marca de carrapato? Arre... como se há saber.

Ando volta e meia bebendo águas em vossas orelhas.
O cobre é importante, como sei. Fundamental, eu diria, é a prata. Mas o metal não passa de merda diante de vocês. E aí está o dilema. Dá para imaginar isso encilhado em um silogismo? Que bruta confusão!

Irmãos, quando comecei a rabiscar plagiando o “Corcel Negro”, sabia que me irmanava à disritmia. Sabia que o meu compasso não marcaria passo algum. Sabia que seria o prospecto de um eterno rascunho. Não tenho esquadro e réguas como vocês. Mal sei diferenciar um quadrado de um retângulo. Confundo as figuras, não me apercebo das medidas, escorrego pelos círculos. Mas sei que as coisas podem ter muitos lados: lados tortos, lados retos, ou lado algum. Não tenho terços, quartos, meias metades, não fraciono as coisas assim. Não que não gostaria de... é que simplesmente não consigo. Talvez tenha sido o cogumelo que comi no quartel, talvez nossa mãe, sem a má intenção, tenha me parido desse jeito. O caso, é que sou o hiato, e também o ditongo que cresce e desce.

Eu sou o balanço, a gangorra, o Trem Fantasma, o Mexicano, o Carro Choque, o algodão doce no parque Tupi. Eu sou a tatuíra, o girino, o funcho na boca do Campari. Sou o gavião, o pato afogado, a seiva do nó de pinho, a vassoura no camundongo.
Eu sou o susto que a negra nos deu.
Eu sou aquele que se xinga.

E tu Clarinha, vais ganhando o mundo por aí.