sexta-feira, fevereiro 4

Musa





Tenho fome

Minha pele seca
Meus caninos enfraquecem
A catarata acinzenta meus olhos

São os anos de inanição, meu amor

Mas ainda olho o derredor com viço
Tenho dedos rijos e hábeis
Pés que andam
E uma certeza que me basta

São os anos em que a distância aproxima

Sinto o cansaço no ranger das falanges
Minhas veias entopem
Minhas unhas se alquebram
A cabeça lateja

São os anos do açoite, do sal espumando a ferida

Mas ainda pressinto um mundo alvissareiro
As flores me inebriam
Os cheiros me entorpecem
Constelações me abraçam

São os anos de meus cílios e nariz no purgatório

O meu peso debruça-se sobre minhas vértebras
A minha descrença malsã amarga meu palato
Minha desconfiança com toda a gente bifurca minha língua
Meu cinismo deita-se em meu colo

São os anos do tropeço, do manquejar, da turbidez da obviedade, meu amor

Mas ainda percebo a minha sorte
Em minha península és musa e flutuas
Caminhas como gente
Levanta-te mulher

São os anos que me pedem agora o esboço de um sorriso
















quarta-feira, fevereiro 2

A Vida útil, apesar do tempo – Cartas II - Alianças



A intersecção da berinjela e da Tailândia,
Da melancia, dos feromônios,
Dos cães, de Kundera,
Dos animais na praia, do tomate seco,
Do suco de morango e laranja liquidificados juntos com Nabokov.

Como se faz (?), eu até sei, mas não conto.

A liquefação do salmão e do basset,
Da água de coco, do boxer, do pincher esquentadinho com a saudade;
Dos cabelos curtos, do beijo que não sai da boca com as flores sobre a mesa;
Dos ataques de sinceridade, das sardas, da ausência, da leveza insustentável,
Da mitologia, das abelhas, do atraso, da cadeira quebrada com o amor que não desprende.

Como se faz (?), eu até sei, mas não conto.

O laço da fechadura e da chave,
Da cana de açúcar, do telefonema longo, do cheiro de fumo com a lágrima na escada;
Da letra da música, do parágrafo estancado, do pedido de ajuda, do iogurte sem gosto,
Da Granola, do jiló, do gosto trocado nas línguas, do sorriso de dentes,
Do estrogonofe de soja, do chocolate amargo, do Neruda com o passado que não passa.

Como se faz (?), eu até sei, mas não conto.

A aliança do frio e da jaqueta emprestada,
Da girafa, da neblina sobre o lago com botas de couro bom;
Da geada, da hortência, da faca com o nome incrustado, do atraso para o almoço,
Da irmã amorosa, da sanga de água turva, do velho de chapéu com pedras enormes que retêm o calor.

Como se faz (?), eu até sei, mas não conto.

A primazia do pastel e da sopa,
De cobertores, penas, calor e pernas;
De quatro pés esfregando-se;
De dois corpos abraçados em descanso.

Como se dá (?), eu até sei, e talvez um dia, se ela deixar, eu conto.