segunda-feira, junho 20

Tempo


O céu está com um umbigão enorme
Apontado para o mar -
Prateando e embarrigando o mar.
Tempo, Tempo, Tempo...
Precisamos de um novo acordo.

Releve os meus desperdícios
E o pouco caso que sempre fiz de ti.
Honrarei as promissórias, não tenhas dúvida,
Mas arrolemos a dívida.

Preciso de tempo, Tempo.
Preciso de mais crédito e de teu lastro.
Não laves as mãos agora se afinal,
É em teu caminho que redescubro o bom passo.

Releve a minha empáfia
E a descortesia que a ti sempre impus.
Honrarei os valores, que a nós fique claro,
Mas renegociemos as prestações, os juros e a multa.

Preciso de tempo, Tempo.
Sei que és infinitamente mais justo do que eu,
Assim como sei que tens a impiedade por premissa e razão.
Mas se então és o reto tutor, me deixe caminhar para mais adiante.

Releve a minha falta de discernimento e o meu desdém.
Bem sabes que apesar da hipocrisia nunca me desviei de fato de tua cartilha.
Pelo contrário, a segui a risca.
Eu só não esperava que a essa altura tivesse tamanha sede por ti.
Desmereci e fui relapso, confesso, a nossa aliança.
Mas com as rótulas e o chão te peço:
Perdoe, ao menos por enquanto, um pobre tolo.

Preciso de tempo, Tempo.
Preciso de mais crédito e de teu lastro.
Honrarei até a tua usura, tenhas certeza,
Mas alinhavemos novas ratificações –
Três décadas me são imperativas. O quê achas?

E nem por um instante, em troca,
Pedirei-lhe que esqueças do fio de tu espada.
Pelo contrário, rogo-te que o afie ainda
Mais em escambo por uma penca de anos.
Anos que a mim são caros,
E que para ti afinal, não passam de lapsos e piscares.
E então sim... Aí sim... Leve minha cabeça.

É que preciso de tempo, Tempo.
É que fiz uma guria e encontrei uma mulher
Que requerem o meu, e o teu tempo.
Se concordares, eu e tu - empenhemos novo trato.
Juro-te que por nova apólice te dou mais uma vida.
Mas com elas, terás que te entender depois. E te confesso,
Para que fique mais interessante,
As ensinarei sobre os atalhos para burlar-te.

O céu está com um umbigão enorme
Apontado para o mar -
Prateando e embarrigando o mar.
Tempo, Tempo, Tempo...
Precisamos de um novo acordo.

quinta-feira, junho 16

Travado

Travado em frente à tela.
Travado e em pelo de cobertor e alfabeto.

Pelado de verbo, adjetivações, pronomes e sintaxe.
Pelado de concordância, de conjugações pretéritas e futuras.
Falta-me até a soldadesca de substantivos, indefinidos ou não.
Hoje consoantes e vogais abandonaram-me
Repudiando danças e cópula,
Negando-se a brincadeira do teclado com as mãos.

De mim nada se compassa, rabisca, ou se forma.

Hoje está forçado, doído, espremido... Uma bagaça.
A porra do freio de mão embestou de ficar puxado.
As engrenagens não se encaixam,
Os pistões não empinam,
As velas não faíscam.
Fugiu a correia, o câmbio,
O cabo de aceleração, o pedal, e também a direção.
Falta-me a ignição, a combustão, os rolamentos, a graxa.

Hoje a consecução mandou a frigidez,
O estéril e a inaptidão, em seu lugar.
Meu útero enrugou,
Minhas trompas estão ao avesso -
Minha vagina, lacrada e seca.
Não consigo sequer abrir as pernas
Ou subir os dedos pelas virilhas.

Não tenho cheiro, gosto, ou umidade.

De mim nada precipita-se, escorrega, ou se pari.
Hoje me surrupiaram as musas,
Os deuses, as partituras, a flauta e as cordas.
Tiraram-me o canto, a voz, o timbre.
Os fonemas diluíram-se na rouquidão.
Minha língua é uma cãibra e meus lábios estão agrilhoados por crinas em pontos.
Não consigo sequer soprar um conto
Ou assobiar sandices.
Tão pouco sussurrar pequenas e miraculosas inverdades.

Falta-me o bisturi,
Sobra-me o cansaço.

Ao menos não vou dormir de castigo - eu acho.
Vai ver tudo de muito disso, é que dia sim dia não,
Eu acabe sentindo frio.
Nada de novo – os mesmos bosques, barbas de pau, faunos e gralhas.
Tudo do mais do mesmo, desde pequenininho.
Muito bom e ao meu bem que por agora,
Flutua entre as copas uma mulher branca
Que trás aos ombros azulões, canários e calafates
A alumiar. E que diz meu nome, e do travesseiro, sonolenta, pergunta:
“Marco, o que foi que te deu hoje?”

quarta-feira, junho 15

Putz



Putz... Gosto de ti pra caralho!

Dos teus pés inquietos que não caminham, mas assim saltitam.
Do teu olhar ladeado que me vê
Enquanto eu vou construindo um mundo.

Do que escreves e me mandas
Com Anaís e ópio a te regar.
Gosto da poesia que te engole,
Das noites que não te tenho
Mas que nelas estás.

Gosto das tuas pernas sobre as minhas enquanto tagarelamos sentados,
De tentar prender inutilmente teu cinto com um clips.
De roubar teu copo, de dividir os talheres, de catar as alcaparras para ti.
Do que me dizes e te escapa de tua língua amor - espontaneidade.

Putz... Gosto de ti pra caralho!
E do receio que me atenta por gostar
De ti, acho que tanto assim.

Repouse....

quinta-feira, junho 9

Joaninha



Não fique triste, apenas chore.
As lágrimas desintoxicarão o mundo
E o sorriso virá como bom império.

Virá como as anáguas dançam com o vento,
Como celofane colorido rodopiando já solto do arame
Em noite estrelada de São João.

Virá branco como nascem os primeiros dentes de uma criança,
Macio feito à fruta rupestre que viaja
No bico de um passarinho para nova e boa terra.

Virá desprendido do ontem
Como uma seta, livre da retenção da besta,
Corta o ar sem importar-se com o alvo.

Não fique triste, apenas chore.
As lágrimas purificarão o mundo
E o sorriso assentar-se-á como bom tempo.

Assentar-se-á como o musgo cobre a rocha fria
E aveluda as quinas de pontas e retalhos
Cegando o fio do corte.

Assentar-se-á como a joaninha de bolinhas pretas
Repousa no lustro da folha da pitangueira
Zunindo nas manhãs cálidas de primavera.

Assentar-se-á como se assenta uma boa avó
Na cadeira de balanço na vigília dos netos
Com o brilho sereno de quem bem já desentrançou a vida.

Não fique triste, apenas chore.
E depois fique risonha até aquelas tuas marquinhas que lembram parênteses,
Cada qual do seu lado esticar-se, abrigando o teu sorriso.

quarta-feira, junho 8

Ressurreição


Ouvi dizer que alguns bons amigos andam dizendo que estou diferente,
Mas eu acho que só estou de retorno.
Saindo das ravinas de águas mau cheirosas,
Deixando os guinchos das hordas baixas para trás.

Os mares andaram turbulentos e espumados. Infindáveis monstros de sal marinho se sucederam a abalroar a minha nave. Uns tinham olhos e narizes enormes, outros, couro e escamas de serra. Alguns tinham presas tão longas que poderiam triturar rochas e montanhas. Tinham tentáculos, caudas de rebenque, garras e esporões do tamanho de arcos.

A terra andou deserta, seca e erodida. No horizonte nem miragem se avolumava.
A planície se alongava num alaranjado turvo exalando um mormaço pestilento.
Os lábios deram lugar às feridas, a testa as bandagens, as orelhas e nuca a carne morta.
Os olhos eram pus, a pele um derretimento - o corpo, todo uma carcaça.

Ouvi dizer que estou diferente,
Mas eu acho que só estou de retorno.
Saindo do covil das almas mortas,
Deixando os guinchos das hordas baixas para trás.

Medusas, Minotauros, Hidras, Krakens... Senhores do inferno.
Derrotados, viciados, ladrões, assassinos, putas...Cobradores de impostos.
Bruxas, demônios, leprosos, mercenários... Vendedores de relíquias.
Escuridão, azia, vômito, aneurismas... Zeladores de incongruências.

Casas mal vividas, salas repartidas, quartos mofados, camas vazias.
Plagas desertas, córregos estanques, folhas secas, capim queimado.
Praça sem coreto, chafarizes oxidados, bancos apodrecidos, gangorras trincadas.
Alianças equivocadas, ouro de mentira, filha feita com o imprestável.

Ouvi dizer que alguns bons amigos andam dizendo que estou diferente,
Mas eu acho que só estou de retorno.
Saindo das sendas do mau feitiço,
Deixando os relinchos das hordas baixas para trás.

terça-feira, junho 7

Aurora


O vento sul bate desde ontem à noite arrebentando com as castanheiras.
O doido fez um rebuliço danado à madrugada inteira:
Arrancou roupas do varal, embolou as nuvens,
Derrubou latas, jogou os baldes longe.
Fez graça com a bacia do molho dos panos de prato que
Rodou feito carrossel pelo pátio.
Mas trouxe por fim na manhã, o sol para a janela.
Precisava de tanta algazarra, o Malazarte?
Tem granola, suco de soja de laranja. Pão, iogurte, frutas, manteiga nova e queijo.
A mesa é pequena, mas a gente cabe nela, os farelos é que se entendam com o chão.

Perdi muito tempo com gente que fala demais ser ter nada a dizer.

Coloquei as tuas meias, não achei nada na gaveta e nem lá fora.
Ficou bom, mas tem um negócio rosa nelas... Não atrapalha ou incomoda.
Agora já dá para caminhar, além do mais as cadelas estão indóceis no portão.
Na volta tira as tuas coisas do chão,
Coloca aquele monte de xampus e cremes no banheiro.
Abre espaço do lado de lá do armário,
Tá sobrando um monte de cabide.
Vê se pendura às coisas.
Eu e a Nina (?)... A gente vai gostar.

Passei muito tempo com gente que fala demais sem ter nada a dizer.

Tira o teu carro, o meu ficou no Jacir e na Marilza, foste tu quem nos trouxeste.
A gente passa na farmácia compra manteiga de cacau
E depois almoça Tilápia com gostinho de limão e de terra.
E depois que almoçarmos a gente volta para casa
Para cairmos de novo na cama. Com esse vento encanando
É bom colocar lençol, manta e edredom.
Vai ficar quentinho com a gente lá embaixo.

Muito tempo...

O dia vai se deitando devagar, mais amarelado do que de costume.
No cômodo ao lado tem um monte de cobertas
Sobre a cama, e sob elas, um sono de pupa.
Pupa, pupa, pupa...
Antes de acordá-la molho os xaxins e alamandas.
Depois paro na porta do quarto e a vejo com as ágatas entre os seios.
Não tem jeito, amanhã é segunda.
Pega, toma, me abraça...
Leva um Neruda, ao menos.

sexta-feira, junho 3

Branca


Quinta - passa das vinte uma.
Quase em casa... O cheiro dela está lá.
Ficou da noite passada, ficou de noites atrás.

Conto isso para ela pelas teclas apertadas do celular
E ela responde e diz que o gosto de minha boca está com ela.
Ficou da noite passada, ficou de noites atrás.

Posso ver tua ponta de pés catapultando o teu corpo
Um pouco mais para o alto - sentir tua boca tocando a minha.
Posso ver teus olhos sorridos com jeito de emaconhados.

Tu passaste o dia procurando anomalias, possibilidades de acidentes.
Fazendo relatórios imensos sobre buracos, pó de ferro, capacetes e ausências de luvas.
Passei o dia preocupado com os cabos e a transmissão simultânea.

Passei à tarde com o teu sorriso róseo,
Com o gosto do caldo de aipim esverdeado pela couve.
Passaste à hora depois do almoço e das planilhas, sonolenta.

Mas a fábrica não pegou fogo, afinal.
Nenhum infeliz teve a sorte de acabar o dia decepado.
A transmissão também deu certo, foi tudo bem... Todos estão satisfeitos - até amanhã.

Teu carro está com pneus novos, ora essa!
Tu fizeste as unhas correndo e saíste apressada.
Eu fiz a barba e achei um perfume velho para passar no rosto.

O placar está por quanto?
Quantos dias sem acidentes?
Há quanto o gelo das barrigas não trazia medo e faceirice?

Há quanto tempo não ríamos por qualquer
Bobagem até a dor exercitar os abdomens?
Já nem poderíamos nos lembrar... E nem devemos, Catharina.

De nossa esquina se estende uma rua, e logo adiante uma avenida.
E depois da avenida, se estica uma estrada,
E pela estrada, dormitam os desvios, as vicinais, a luz e a brita.

Por ela quebram-se noites intermináveis.
Os passados vividos, sofridos, alquebrados, corrompidos.
Desfazem-se as tristezas - cristaliza-se o sal.

E da noite quer nascer o dia.
E de o vivido, erguer-se um andaime.
E do sal, pontear o gosto, de novo... Catharina....

Tá bom...tá bom!
Se tu dizes... Vou tentar dormir com esse cara, Deus,
Ainda que prefira repousar contigo.

Achei teu brinco...