terça-feira, maio 26

Verdes Anos


O controle da televisão era uma meleca só - a gosma da modorra do dia. O sebo entre os dedos fedia o azedume do vômito.
O corpo, pegajoso de suor ressequido, se ouriçava em um coça e coça de beirar desgraça.
Pois então, as brotoejas num inchaço beirando a inflamação, que aparece lá na TV um guri de calças de veludo molhado. A camisa e a gola enorme, endurecida no cuspe da goma, rija feito pau de lei, carimbava o tempo: setenta, na veia - e desgrudei numa puxada certeira com o indicador o escroto suado das virilhas.
Vendo o piá, feito coisa morta na ronda do mundo brincando de assombração, veio à lembrança a calça de lã que era obrigado a usar. A desgraçada, nem ainda o dia havia esquentado, já judiava o traseiro que nem urtiga peluda. Até hoje, a lembrança mais vívida de martírio e suplício, é a de viajar durante horas no banco de trás de um Opala junto com meus irmãos com a bunda em brasa, formigando feito xoxota de beata lavando cueca de pároco.
Aquela medonha era o prólogo do inferno. Nem o blusão tricotado de lã crua roçando no pescoço conseguia ser pior. As frieiras causadas pelas carpins eram fichinhas perto do flagelo daquela merda. O cu suava em bicas. Quando ia tirar a pingolinha para urinar tinha de fazer uma faxina no cabeçote, tamanha quantidade de fios enroscados no prepúcio. Era de matar. No fim do dia, finalmente livre do incômodo, o traseiro lembrava um Tolstoi em braille. A vontade era de não sentar nunca mais. Horas depois de liberto da maldita, ainda dava para sentir os minúsculos furinhos a atazanar o traseiro.
Quando então me livrei da danada, foi a vez do Bamba, cintos de náilon e calções curtos do mais puro algodão. Dor ao corpo até que não causavam, mas ao moral... Para mim que tinha, e ainda tenho, pernas compridas e canelas finas, eles eram um relho açoitando a estima. Deus, meu! Como colocar um Bamba branco em conspiração com a carpin marrom que, por sua vez, tramava com o shorts de pano contra a insegura adolescência? Não tinha jeito, a luta era inglória. Não havia para onde correr.
As coisas na época eram diferentes. Nos cabelos, por exemplo, tinha-se de dar jeito. Pouco importava se eles se recusassem peremptoriamente à doma dos ossos do pente.
Espinhas, puberdade? Defeito, sujeira, feiúra - sujeito desengonçada.
Agora, quanto mais descabelado, esfarrapado, sem combinação, melhor. Bamba é cool, e os bermudões vão até a circunferência das canelas, se esse for o caso. Hoje, ainda bem, o feio já não tem tanta certeza sobre sua feiúra. E o bonito, também não sabe bem se é tão bonito assim.
Em dias pós-modernos, tudo se disfarça, confunde-se. Enganação e talento troteiam juntos. As bússolas perderam o ímã. Ora, ora, carambolas, e isso tudo até é bom.
Não obstante, contudo, porém, todavia, porra... Índigo rasgado fica dependurado nas araras dos centros comerciais, e não nas estrepadas do uso. Qualquer aventureiro mete a mão. No tempo ido, ao menos para mim, ascender à descompostura exigia puir a alma em alguns sonetos e em uma penca de sarjetas. Fora o cacife para bancar a desconfiança que os rasgões despertavam. Se a consciência dos setenta e o desbunde dos oitenta eram melhores, não sei. Mas, me parecem mais íntegros. Desconfio de uma época em que tudo é permitido ao tempo que a vigilância aumenta. Parece-me condescendência vigiada. Tenho a impressão de que gaiolas mais claustrofóbicas suscitavam cantos mais melódicos e inquietantes. O viveiro grande em que tentam resumir agora o mundo impede os olhos de vislumbrar a tela miúda, aprisionando a passarinhada que vai gorjeando numa nota só, feliz no ledo engano de meia dúzia de timbres. Esses tempos minha guria mais velha trouxe na pauta de negociação sobre os programas de TV a serem liberados para assistir o ponto “Rebeldes”. Vetei de cara. Faço isso sempre, sumariamente, de modo a instigar argumentações. Naquele dia quase tombei perplexo:
Disse ela: “O programa é bom, ensina a ser rebelde”.