quinta-feira, agosto 13

Alcunhas

Apelido, para ser assim, apelido mesmo, de verdade, tem que colar rápido e com naturalidade, feito ranho em azulejo. Precisa varrer do mapa o nome de batismo. Apelido bom só devolve ao dono o nome que mamãe tanto fez gosto quando o sujeito bate as botas, esticas as canelas, inspira.
Meu irmão, por exemplo, é Pinto. Antes de o chamarmos pelo nome, alguém disse: “Parece um pintinho amarelinho.” Pronto, estava lá o Pinto. Para voltar a ser chamado por Flavio foi morar lá onde o Danado perdeu as calças. Ainda assim, quando está de férias e alguém lá dos infernos liga, a gente, involuntariamente é claro, entrega a rapadura:
- Alô.
- Oi...
- Queres falar com quem?
- Com o Flavio.
- Pai ou filho?
- Filho, eu acho.
- Ah, é com o Pinto... Momentinho. Pintô... É pra ti.

Éramos pródigos em apelidar. Os codinomes variavam conforme as características –invariavelmente as piores –, habilidades e esquisitices de cada um, somadas aos dias que se viviam.
Exemplificando: o Zulu, que na infância havia sido Péle, era Zulu porque todo mundo via a ignomínia, a merda se melhor lhes soa, do Apartheid pela TV. O Buléu era Buléu, por conta das acrobacias na bicicleta. Corajoso, é bem verdade, voava alto sempre. No ar era um espetáculo, mas na aterrissagem, feridas e ossos partidos.
O lance, é que esse negócio de apelido, quando pega, pega e já era. Justificá-lo pouco importa. Como esclarecer na estaca do condizível ser o Salada, o Salada? Existem coisas que ninguém explica. O gozado é que hoje o sujeito é chefe de cozinha em um navio de cruzeiro. Vai saber!
O caso do Pelado seguia a mesma incógnita, só que esse, apesar de continuar viajando, não embarcou em navio algum.
Outros qualificativos, porém, não tinham mistério. O Foguete era é ruivo, cabeludo e avoado. Alguém precisa fazer alusão à altura para que se entenda o caso do Tatu? Ou do Farmácia, que vivia amassando e cheirando hipofagin? Ou mesmo o do Fanho, que até poderia ter dado um nó na afronta, mas como desgraça quando dá na telha de ser desgraça não tem jeito, mesmo com toda grana e cirurgias, permanece falando pelo nariz.

Já outros apelidos são não resistem assim ao tempo, e a alguma força de vontade . O Quatorze, coitado, envelheceu, e agora vira o rosto quando gritam Quarenta. O Gordo, não acreditaríamos na época, emagreceu, ficou bonito, e agora trepa com umas magras que nem na punheta ousava comer. E o Barata, que apesar de continuar branco feito vela, acalmou as incursões pelas sarjetas. Mas isso, diga-se de passagem, muito se deve a ausência prolongada do Cure no Brasil, e da decadência do Bom Fim. Sem falar na dificuldade de hoje em dia, para quem não tem plano de saúde, de descolar umas cartelinhas tarja preta.

Não obstante, apelidos nem sempre flertam com caricaturas. Vez em quando, imergem por antítese. O Loloco foi e continua a ser o cara mais careta que conheci na vida, apesar de já ter o corpo todo pintado numa época em que só a âncora do Popeye passava batida. A mesma coisa o Aloprado - obelisco de sobriedade.

Pondo fim às reminiscências, foram tantos, que não posso seguir adiante sem incorrer no risco de tornar-me enfadonho. Para acabar só lhes peço um bocadinho de paciência e ritmo.

Em meia dúzia de fôlegos:

Aranha, Jubi, Bolo, Zoio, Laranja. Tofo, Dinho, Báro, Feice, Cenoura, Baga, Manduca, Banana.

Um respiro. Segue em frente. Logo acaba.

Prego, Escurinho,Maradona, Maneco, Magu, Nego, Seco, Colméia. Paranga, Taquara, Goiaba, Caverna, Jacão, Assassino, Tomate, Conha, Beterraba, Alemão, Pardal.

E entre tantos muitos outros... Paspalho, um abraço.

Circo - panturrilhas e olhos puxados



Impérios, senhores, lacaios, mulas, homens vencidos. Todos tropicaram nos cascalhos em busca da seda. Abro mão da luz e perscruto os traços. Tendo descobrir se vieram do frio das bétulas ou do mormaço dos bambus.
Os olhos puxados se parecem tanto quanto os redondos nossos. São mui, mui diferentes, todos eles.
Os corpos de tanta força contra a gravidade chegam ao hiato donde mora a leveza.
São elásticos... Reviram-se, dobram-se, desenroscam-se. E a gente quase estrábica já não sabe onde começa ou termina o homem. Nada de novo, se o porém fosse filosófico. Não obstante, se tratando de pele, músculo e osso, urge logo ali a obrigação do desenozar-se. Pouco importa o intricado do emaranhado. Ou a coluna se recompõe ou termina num esquife. O resto é conversa mole. Patatis, patatás, teretetés de quem mal se estica ou encolhe, não vai nem fica, encaroçando a vida quasímoda.

E as mulheres...
Que lindas, que fortes. Ancas, cada uma das laterais nas ponteiras do osso, entrosam tórax e pelve num lacete. Coxas rijas, panturrilhas filhas da rocha dura. Antebraços de ópio e descaminhos.
Tantos membros de disciplina, de borracha, de fibra, de plástica... Tudo bem torneado.
Volúpia (!), que cheiro bom tu tens.

terça-feira, maio 26

Verdes Anos


O controle da televisão era uma meleca só - a gosma da modorra do dia. O sebo entre os dedos fedia o azedume do vômito.
O corpo, pegajoso de suor ressequido, se ouriçava em um coça e coça de beirar desgraça.
Pois então, as brotoejas num inchaço beirando a inflamação, que aparece lá na TV um guri de calças de veludo molhado. A camisa e a gola enorme, endurecida no cuspe da goma, rija feito pau de lei, carimbava o tempo: setenta, na veia - e desgrudei numa puxada certeira com o indicador o escroto suado das virilhas.
Vendo o piá, feito coisa morta na ronda do mundo brincando de assombração, veio à lembrança a calça de lã que era obrigado a usar. A desgraçada, nem ainda o dia havia esquentado, já judiava o traseiro que nem urtiga peluda. Até hoje, a lembrança mais vívida de martírio e suplício, é a de viajar durante horas no banco de trás de um Opala junto com meus irmãos com a bunda em brasa, formigando feito xoxota de beata lavando cueca de pároco.
Aquela medonha era o prólogo do inferno. Nem o blusão tricotado de lã crua roçando no pescoço conseguia ser pior. As frieiras causadas pelas carpins eram fichinhas perto do flagelo daquela merda. O cu suava em bicas. Quando ia tirar a pingolinha para urinar tinha de fazer uma faxina no cabeçote, tamanha quantidade de fios enroscados no prepúcio. Era de matar. No fim do dia, finalmente livre do incômodo, o traseiro lembrava um Tolstoi em braille. A vontade era de não sentar nunca mais. Horas depois de liberto da maldita, ainda dava para sentir os minúsculos furinhos a atazanar o traseiro.
Quando então me livrei da danada, foi a vez do Bamba, cintos de náilon e calções curtos do mais puro algodão. Dor ao corpo até que não causavam, mas ao moral... Para mim que tinha, e ainda tenho, pernas compridas e canelas finas, eles eram um relho açoitando a estima. Deus, meu! Como colocar um Bamba branco em conspiração com a carpin marrom que, por sua vez, tramava com o shorts de pano contra a insegura adolescência? Não tinha jeito, a luta era inglória. Não havia para onde correr.
As coisas na época eram diferentes. Nos cabelos, por exemplo, tinha-se de dar jeito. Pouco importava se eles se recusassem peremptoriamente à doma dos ossos do pente.
Espinhas, puberdade? Defeito, sujeira, feiúra - sujeito desengonçada.
Agora, quanto mais descabelado, esfarrapado, sem combinação, melhor. Bamba é cool, e os bermudões vão até a circunferência das canelas, se esse for o caso. Hoje, ainda bem, o feio já não tem tanta certeza sobre sua feiúra. E o bonito, também não sabe bem se é tão bonito assim.
Em dias pós-modernos, tudo se disfarça, confunde-se. Enganação e talento troteiam juntos. As bússolas perderam o ímã. Ora, ora, carambolas, e isso tudo até é bom.
Não obstante, contudo, porém, todavia, porra... Índigo rasgado fica dependurado nas araras dos centros comerciais, e não nas estrepadas do uso. Qualquer aventureiro mete a mão. No tempo ido, ao menos para mim, ascender à descompostura exigia puir a alma em alguns sonetos e em uma penca de sarjetas. Fora o cacife para bancar a desconfiança que os rasgões despertavam. Se a consciência dos setenta e o desbunde dos oitenta eram melhores, não sei. Mas, me parecem mais íntegros. Desconfio de uma época em que tudo é permitido ao tempo que a vigilância aumenta. Parece-me condescendência vigiada. Tenho a impressão de que gaiolas mais claustrofóbicas suscitavam cantos mais melódicos e inquietantes. O viveiro grande em que tentam resumir agora o mundo impede os olhos de vislumbrar a tela miúda, aprisionando a passarinhada que vai gorjeando numa nota só, feliz no ledo engano de meia dúzia de timbres. Esses tempos minha guria mais velha trouxe na pauta de negociação sobre os programas de TV a serem liberados para assistir o ponto “Rebeldes”. Vetei de cara. Faço isso sempre, sumariamente, de modo a instigar argumentações. Naquele dia quase tombei perplexo:
Disse ela: “O programa é bom, ensina a ser rebelde”.

segunda-feira, abril 6

Gárgula


Palavras, assim como gente e bicho, e tudo mais que se movimenta e anda, vivem sob a cruz das castas. Algumas são campônias, outras operárias. Muitas são peões em batalha; tantas outras, políticas matreiras. Há as que ao mundo dão o movimento, enquanto outras sentenciam à estagnação. São férteis, são estéreis. São labuta, são preguiça - a vida e a definhação. E se ainda muito importa o papel que cumprem e os sentidos que todas elas alavancam, no final, ou são nobres, ou são plebeias, e ponto.
O Insólito, por exemplo, tenho certeza, é senhor de muitas almas e alqueires. Veste casaca aveludada e botas de bom couro. Com seus aneis, assenta-se sempre acima do passo da rotina.
Quando topei com ele pela primeira vez, fiquei impressionado por demais. Seu tom me deu a impressão da volatilidade. E ao descobrir que na vida nada mais faz além de encarnar o inesperado, a recusa ante a regra, salivei abobalhado.
Lua cresce, lua mingua, as melenas entordilhando, voltei ontem a me inclinar em sua reverência.
Transtornado pela prisão ventre de minha filha mais nova, resolvi entrar no google para assuntar se o leite Ninho entope ou não entope os intestinos. Achei que não ia dar em nada, “bobagem minha”, pensei. Mas como o Desespero também é de linhagem antiga e nobre, fui em frente. Ora pois, quanto assombro. Num clique estava lá eu num fórum de discussão sobre barriguinhas duras e estufadas. Mães zelosas de todos os cantos com suas dúvidas, certezas, lamentos, procurando um desentupidor para os rebentos. Uma mulherada que só vendo. Fiquei de longe, só de bico, na esperança de que alguma delas solucionasse o meu problema sem que precisasse me manifestar. Como a resposta não vinha, ofereci a todas meus cumprimentos e pesar pelos seus e fui levantando a questão:
- Alguma das senhoras sabe se o leite Ninho endurece a merda e tranca o rabisteco?
Para quê? Foi um alvoroço só. Nem tinha acabado de digitar a interrogação e o rugido ecoou:
- O senhor quer dizer endurecer o cocô? Constipar o nenê?
Como não sou bobo nem nada, entendi o puxão de orelhas, e não gostei. Afinal quem é ela para dizer como devo externar minhas aflições? Ora... Retruquei de pronto:
- É isso mesmo, minha senhora. A merdinha mole vira um monstro cagalhão prevalecido que deveria procurar alguém do tamanho dele para brigar? A senhora sabe ou não sabe, afinal, se é o leite Ninho o mandante da peripécia?
Arre, que peleia comprei. Mães indignadas congestionaram minha caixa de entrada:
- Seu grosso... Não tem vergonha de falar desse jeito?
- Tenha mais respeito, escreveu outra.
- O senhor está brincando com a desgraça alheia e, ainda por cima, de crianças, seu medonho, dedilhou mais uma.
Emputeci:
- Cacete! Oh... Pecherecada louca!?, digitei já meio enfezado.
- Tô com uma guria de seis meses que não caga têm três dias, e vocês com todo esse xingamento? Será que dá para responder se com o leite Ninho o cocozinho do bebê fica sequinho e durinho, e o coitadinho acaba entupidinho?
- Mas por que o senhor não explicou isso antes? Pricisava esse estresse todo?
- É, precisava?, emendou logo outra.
- Deve ser pai solteiro, desses independentes. No mínimo adotou achando que ia ser fácil.
- Gozado isso, né? Será que ele é....
- Senhoras! E o leite Ninho?
- Disso eu não sei, mas conheço uma receita infalível para desamarrar os intestinos.
- Eu também, atalhou uma de volta.
- Ah, mas melhor do que a minha não deve ser.
- Pois aposto que é.
- Duvido.
- Até parece...
- Parece o quê?
- Que tá se achando, a sabida.
- É pena eu não estar aí, daí ia ver só uma coisa.
- Que coisa, que coisa? Dou-te o endereço e te espero, só quero ver então....
- Senhoras... Senhoras....
- E tu não te metes, bobalhão. Vai-te embora dormir, chatonildo. Leite Ninho, leite Ninho... Parece um bebezão choramingando. Não sabes falar outra coisa?
Como a discussão foi adiante, resolvi aceitar o conselho. Desliguei o computador e peguei o rumo da cama.
Já deitado, joguei a vista perpassando o breu até o tronco mais alto do pé direito. Na forquilha, acocorado feito um Gárgula, ria o nobre Insólito, mangando de mim.

segunda-feira, março 23

Sinal de alerta

Meus caros e parcos leitores, o texto abaixo foge do perfil do blog, mas é imprescindível passar os olhos.

Carta aberta aos jornalistas do Brasil
19/03/2009 20:54:59

Por Leandro Fortes

No dia 11 de março de 2009, fui convidado pelo jornalista Paulo José Cunha, da TV Câmara, para participar do programa intitulado Comitê de Imprensa, um espaço reconhecidamente plural de discussão da imprensa dentro do Congresso Nacional. A meu lado estava, também convidado, o jornalista Jailton de Carvalho, da sucursal de Brasília de O Globo. O tema do programa, naquele dia, era a reportagem da revista Veja, do fim de semana anterior, com as supostas e “aterradoras” revelações contidas no notebook apreendido pela Polícia Federal na casa do delegado Protógenes Queiroz, referentes à Operação Satiagraha. Eu, assim como Jailton, já havia participado outras vezes do Comitê de Imprensa, sempre a convite, para tratar de assuntos os mais diversos relativos ao comportamento e à rotina da imprensa em Brasília. Vale dizer que Jailton e eu somos repórteres veteranos na cobertura de assuntos de Polícia Federal, em todo o país. Razão pela qual, inclusive, o jo rnalista Paulo José Cunha nos convidou a participar do programa.
Nesta carta, contudo, falo somente por mim.
Durante a gravação, aliás, em ambiente muito bem humorado e de absoluta liberdade de expressão, como cabe a um encontro entre velhos amigos jornalistas, discutimos abertamente questões relativas à Operação Satiagraha, à CPI das Escutas Telefônicas Ilegais, às ações contra Protógenes Queiroz e, é claro, ao grampo telefônico – de áudio nunca revelado – envolvendo o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, e o senador Demóstenes Torres, do DEM de Goiás. Em particular, discordei da tese de contaminação da Satiagraha por conta da participação de agentes da Abin e citei o fato de estar sendo processado por Gilmar Mendes por ter denunciado, nas páginas da revista CartaCapital, os muitos negócios nebulosos que envolvem o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), de propriedade do ministro, farto de contratos sem licitação firmados com órgãos públicos e construído com recursos do Banco do Brasil sobre um terreno compr ado ao governo do Distrito Federal, à época do governador Joaquim Roriz, com 80% de desconto.
Terminada a gravação, o programa foi colocado no ar, dentro de uma grade de programação pré-agendada, ao mesmo tempo em que foi disponibilizado na internet, na página eletrônica da TV Câmara. Lá, qualquer cidadão pode acessar e ver os debates, como cabe a um serviço público e democrático ligado ao Parlamento brasileiro. O debate daquele dia, realmente, rendeu audiência, tanto que acabou sendo reproduzido em muitos sites da blogosfera.
Qual foi minha surpresa ao ser informado por alguns colegas, na quarta-feira passada, dia 18 de março, exatamente quando completei 43 anos (23 dos quais dedicados ao jornalismo), que o link para o programa havia sido retirado da internet, sem que me fosse dada nenhuma explicação. Aliás, nem a mim, nem aos contribuintes e cidadãos brasileiros. Apurar o evento, contudo, não foi muito difícil: irritado com o teor do programa, o ministro Gilmar Mendes telefonou ao presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, do PMDB de São Paulo, e pediu a retirada do conteúdo da página da internet e a suspensão da veiculação na grade da TV Câmara. O pedido de Mendes foi prontamente atendido.
Sem levar em conta o ridículo da situação (o programa já havia sido veiculado seis vezes pela TV Câmara, além de visto e baixado por milhares de internautas), esse episódio revela um estado de coisas que transcende, a meu ver, a discussão pura e simples dos limites de atuação do ministro Gilmar Mendes. Diante desta submissão inexplicável do presidente da Câmara dos Deputados e, por extensão, do Poder Legislativo, às vontades do presidente do STF, cabe a todos nós, jornalistas, refletir sobre os nossos próprios limites. Na semana passada, diante de um questionamento feito por um jornalista do Acre sobre a posição contrária do ministro em relação ao MST, Mendes voltou-se furioso para o repórter e disparou: “Tome cuidado ao fazer esse tipo de pergunta”. Como assim? Que perguntas podem ser feitas ao ministro Gilmar Mendes? Até onde, nós, jornalistas, vamos deixar essa situação chegar sem nos pronunciarmos, em termos coletivos, sobre esse crescent e cerco às liberdades individuais e de imprensa patrocinados pelo chefe do Poder Judiciário? Onde estão a Fenaj, e ABI e os sindicatos?
Apelo, portanto, que as entidades de classe dos jornalistas, em todo o país, tomem uma posição clara sobre essa situação e, como primeiro movimento, cobrem da Câmara dos Deputados e da TV Câmara uma satisfação sobre esse inusitado ato de censura que fere os direitos de expressão de jornalistas e, tão grave quanto, de acesso a informação pública, por parte dos cidadãos. As eventuais disputas editoriais, acirradas aqui e ali, entre os veículos de comunicação brasileiros não pode servir de obstáculo para a exposição pública de nossa indignação conjunta contra essa atitude execrável levada a cabo dentro do Congresso Nacional, com a aquiescência do presidente da Câmara dos Deputados e da diretoria da TV Câmara que, acredito, seja formada por jornalistas.
Sem mais, faço valer aqui minha posição de total defesa do direito de informar e ser informado sem a ingerência de forças do obscurantismo político brasileiro, apoiadas por quem deveria, por dever de ofício, nos defender.

Leandro Fortes Jornalista

Brasília, 19 de março de 2009

Foram enviadas cópias desta carta para Sérgio Murillo de Andrade, presidente da Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj); Maurício Azedo, presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI); e Romário Schettino, presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SJPDF)

quarta-feira, março 18

Lepra


Escrevi aqui no Blog, tempos atrás, sobre minha pendenga com uma empresa junto aos tribunais constituídos. Revelei pouco sobre o causo para não atrapalhar o bom andamento dos trâmites processuais. Agora, a sentença dos senhores de preto e togas é pública, então já posso dar a língua ao vento.
Iniciando pelo fim, logo adianto: quedei na peleia. A briga era contra Os Correios, empresa estatal subordinada ao Ministério das Telecomunicações. Aquela bem conhecida da gente por conta dos caras suando dentro de um uniforme que cachorro vê de longe, e pela aparição de diretores nos telejornais metendo a mão larápia e sebosa no dinheiro dos otários que pagam impostos direto na fonte.
Pois é, a empresa essa perdeu um DVD meu. Quem dera fosse do espetáculo da Bethânia com a Omara Portuando. Esse eu achava rapidinho em qualquer centro de compras. Ela perdeu mesmo foi uma produção em vídeo de trinta minutos que banquei do próprio bolso, há muito currado por taxas e contribuições que vou bater as botas sem ver transformarem-se em benefícios.
Perdeu como? Não sabe, e tão pouco quer saber. Mas nega, nega até o fim. Aceitou despachar a encomenda, cobrou por isso, não entregou, e nega, nega até o fim.
Fiquei fulo mesmo, emputecido, raivoso e ainda mais descrente do que já ando, por ter perdido a causa. Ora, se eu tenho os documentos comprovando a postagem do material na data tal, em tal agência e município, e a empresa por sua vez não possui minha assinatura na papelada atestando o recebimento, como meu requerer pode ser improcedente, como disse a juíza?
Sem pestanejo lhes respondo: simplesmente porque sempre perdemos, e eles sempre ganham. É a ordem natural das coisas por aqui. Eles têm apertos de mãos, assessores, fisiologismos, leis caducas e o nosso voto burro. Parlamentar hoje, por exemplo, é atravessador de verba pública. Juiz? Estrela de televisão. Vide o Gilmar, guardião supremo do Estado de Direito e, segundo a Carta Capital, senhor de universidade prestadora de serviços sem licitação a organismos públicos, e também coronel de metade do Mato Grosso. Se acharem que estou me passando, é só consultar uma hemeroteca, e daí tentar formar opinião.
Mas voltando a vaca gorda, foi por causa dele que perdi minha causa. Foi por culpa do Gilmar. É ele o responsável. Ele, o Renan, o José, o Michel, e mais o PMDB inteiro. Ah, e também o Fernando, agora o bam-bam-bã da comissão de obras do Senado. Justo lá, por onde passa a metade dos lobistas ancorados no cerrado plácido da Esplanada dos Ministérios.
Êta porra! E eu aqui, sem meu documentariozinho que me custou as burras para fazer. Mas Oxalá, tenho fé, alguém ainda há de ser preso. Afinal de contas perderam o meu DVD, ora bolas!
Não obstante, se ninguém entrar em cana logo, largo esse negócio de audiovisual e viro diretor do Senado. Diz que o negócio é bem bom. Dá grana e não precisa fazer quase nada. Só dar uma alisadinha nos escrotos que, apesar de enrugados, são pródigos em foder com quem não faz parte da rodinha.
Posso também abrir uma empresa em Brasília e negociar notas frias. Será uma roldering de muitas empresas: postos de gasolina, restaurantes, gráficas, serviços de transporte. Firmas de segurança, limpeza, instalação de telão e tradução simultânea. E tudo, tudinho mais que a demanda impuser às necessidades. A sede vai ser numa salinha em Planaltina. Vai ter uma escrivaninha com o tampo solto e uns armários grandes, daqueles de latão. Iguais aos das secretarias de escolas públicas. Vão servir só para guardar os blocos de notas fajutas. E é claro, na precaução, na saída dos fundos do cômodo, coloco um incinerador dos quentes.
E não julguem o valor do negócio pela saleta e pelas traças na cola avermelhada dos bloquinhos. Empreendimento assim já nasce respaldado, sim senhor. Com aval e retaguarda de delegado, capitão e coronel. E mais ainda, lá para adiante, se os números forem bons, chega a benção dos congressistas, procuradores, juízes, ministros e generais.
Assim vai ser. Vou ganhar muito dinheiro. Vou ensinar aos meus filhos que em terra de ninguém, cada um, de cepo, arranca o seu quinhão.
Mais dia, menos dia, vou estar na televisão. Homem influente, amigo de barões. Senhor financiador amasiado com os pequenos diabos, varões da lei.
Salve o voto, a democracia, a carta federal. Salve as instituições, e o senhores que por elas nos guardam.

terça-feira, fevereiro 24

O matador


Ia um quarto de século que não tirava uma manhã para entregar-me ao fabrico de uma boa funda. Atiradeira, estilingue, bodoque, para quem não é do sul. Outro dia já havia tentado fazer uma pandorga. Tarefa hercúlea, tendo em vista que nunca fui bom em lidar com coisas que rasgam ou se partem facilmente. Sou meio abrupto nos manejos. Para mim material bom é aquele que aguenta minha parca paciência e a falta absoluta de jeito. Acreditem ou não, na quinta série rodei em Educação Artística.
Atirei-me a empreitada por um sobrinho meu, de seus sete anos, que chegou por aqui falando em estilingue, pedra, borracha, grito de gato. Não sei de onde saiu a cisma, já que esse negócio de manufaturar a própria distração caiu em desuso faz tempo, mas confesso que fiz bastante gosto.
Depois de uma noite de falação: “vou ganhar, minha mãe vai comprar”, parapapá e tititi, tirei o guri cedo da cama e fomos atrás de uma boa goiabeira. Sim, porque funda boa se faz de goiabeira. De resto, é só para passar raiva. Achadas duas, três árvores e examinadas as potencialidades das forquilhas, deitamos o facão num braço da pobre e arrastamos a galhada até em casa.
Mal havíamos limpado os galhos finos e serrado as bifurcações escolhidas, o piá já batia pé em inquietação.
- Oh, Tio Marco, demora isso aí? Não tem uma loja por aqui, não?
Só amansou a impaciência quando lhe dei o canivete. A cada pedaço de casca tirada o guri soltava um impropério de regozijo. Quando viu a madeira branqueando aos poucos vibrou e se pôs a raspar as últimas fibras. Com um monte de ferramenta pelo chão, largou o canivete e tentou continuar o trabalho com um serrote. Não deu certo, e lá foi o dentado pelos ares. A serrinha, quem sabe? Que nada. Ele já ia pronto para encher a funda de porrada contra a cesta de basquete quando se deu conta:
- Oh, Tio Marco (?), devolve o canivete.
Prontas as forquilhas das três atiradeiras – uma grandalhona, outra mediana, e mais uma nanica que cabe escondida no estojo e dá para levar para o colégio - deixamos o sol trabalhar de maneira a dar conta da umidade. De dois em dois minutos ia ele lá fuçar.
- Agora tá ficando seco. E ia de novo.
- A madeira tá ficando dura. E mais uma vez.
- Agora não quebra mais. Ficou branquinha.
Levei então o danado até a garagem para canibalizar uma bicicleta velha. Rapidinho, rapidinho, e a câmara do pneu já era força de empuxo. Depois rumamos ao quarto para bagunçar alguns armários a cata de uma calça de couro velha ou qualquer outra coisa útil ao propósito. Achamos um cinto e em meia dúzia de picotes estavam prontos os descansos da munição.
Foi só nessa hora que zuniu a aura da prudência em meus ouvidos. Embora tardiamente, desdobrei-me na catequização.
- Olha, Lipe... A funda é uma arma rústica. Uma arma... Entendeu? Os homens caçavam com isso. Imaginou? Dá para derrubar um veado com ela. Até hoje algumas tribos isoladas mundo afora utilizam a atiradeira nas caçadas.
E o guri? Ora, cagando pro meu blablabá, tirintotón. Minha herpes de estimação formigou dentro do lábio:
- Lipe, o estilingue pode ser perigoso. Se uma pedra pegar na testa de alguém até matar pode.
- Eu não vou usar pedra, não. Só bolinha de gude. Tenho um monte assim num saco lá em casa.
- Pior ainda, zebuzão”.
- Mas foi você quem falou que bolita era bom.
- Se falei tá desfalado. Não pode, é perigoso. Projétil bom mesmo de bodoque é aquela britinha, pequena e leve. E a gente só atira em sítio, chácara, pátio grande, e pronto.

Durante os dias que ficou por estas bandas a vida dos insetos foi um inferno. Como se não bastassem os passarinhos, as lagartixas e mais uma penca de predadores, tinha o Lipe. Se um cascudo, aranha, gafanhoto, dormisse no ponto, estava lá ele e a inseparável. E para complicar ainda mais a vida da bicharada, não era simplesmente evitar cruzar o caminho do piá. A irmã e a prima, donzelas em desespero a cada pobre coitado ao longe passando, aos gritinhos clamavam pelo matador.
- Vou buscar minha funda, anunciava o carrasco para o alívio das moçoilas.
Normalmente ele acabava resolvendo a contenda com o peso do pé. Mas o estilingue estava ali, de salvaguarda, impondo respeito caso uma aranha se mostrasse peluda por demais.
Pois bueno... Depois de vinte anos fui ao mato feito guri avoado buscar um bom pau de funda. Fiz mira e encolhi os ombros quando a pedra ricocheteou no alvo pra mais de dez metros e chegou perigosamente perto da varanda.
Agora, o matador volta para casa. Ele e as fundas. Aos pais recomendo atenção. Principalmente com a nanica. Afinal, ela cabe no estojo do colégio.

sábado, fevereiro 21

Ciclo




Matem-me, por obséquio, nem o lixo recolho mais.
É o tempo das mulas sem cabeça dando-se por chegado.
O tempo dos caiporas, sem fumo, sem piteira.
O ensejo dos Curupiras em dentes verdes falecidos na mata.
Dias de Guaçu-boi - Boitatá caolho nas campinas secas.
Sucessão das horas do preto, sem mágica, sem fantástico.
É o tempo exilado nos ciprestes, sem Teiniaguá, cerro, Salamanca e Jarau.

Passo em passo, passa a canoinha e seu Caronte pelo Riozinho.
Passa a bruxa sem arquétipo, sem vassoura, sem chapéu pontudo ou tamancas.
É tempo dos ventos tristes - Bóreas em carrancas.

Matem-me, no obséquio, nem o lixo recolho mais.
É o tempo da hidrocefalia.
O tempo do rosto monstro, sem sombrancelhas, sem bochechas e nariz.
Hora e vez do beiço leporino, da boca retalhada, da baba seca na marca da sutura mal feita.
Época de cabeças orelhudas e dentadas postiças.
Ocasião do olhar sem têmpera, orfão do viço.
É o tempo exilado na pele seca - rugas em sulcos.

Passo em passo, passa a canoinha e seu moedeiro pelo Riozinho.
Passa o Jorge sem manto, sem espada, sem cavalgadura e dragão.
É tempo de Quimera - ausências de herois.

Matem-me, por obséquio, nem o lixo recolho mais.
É o tempo dos pastores sem cajado.
O tempo do ovelheiro sem lã, sem toldo, sem sineta e sandálias.
Noites das matilhas, da saliva medonha, do rosnar.
Ciclo das feras, dos grunhidos, do range-range que não cessa.
Anos da peste, do pus, de caninos ensanguentados.
É o tempo das buchadas abertas - tripas esturricadas ao sol.

Passo em passo, não tenho óbolo, sequer língua, para atravessar.
Passo em passo, adentro o irremediável.
É tempo de insanidade, sucessão dos versos sem clave, sem dó, sem sol.

quarta-feira, fevereiro 11

Expedição


Aventura, esporte radical? Esqueçam asadelta, montanhismo, paraquedismo, rafting, tiro ao alvo em mendigo, expedições à África Central. Se quiseres tu adrenalina, faça um filho. É fácil. Basta só colocar aquele negócio dentro daquele outro negócio e esperar nove meses... com o cu na mão.
Exemplo bobo para justificar o ânus no andaime? Cinco ou seis dedos?
Quer complicar? Repasse os últimos quinze anos da vida que levaste. Alô, show de horrores. Bom dia, trem fantasma.
Isso sim é radical. Ficar matutando sobre o grau de imundície e contaminação da tua semente e ficar torcendo para quem venha adentrando o mundo não herde o fardo de uma vida ligeira.

A porrada do susto passa quando a gestação já vai entrando no terceiro mês. A essa altura já abandonaste o discurso ateísta e te transformaste num agnóstico amedrontado.
Quando chegar o quinto mês e tu olhares a barriga da prenda com um caroço movediço andando de um lado pro outro, e fores chutado no meio da noite por um alien escondido na barriga da tua mulher, tchauzinho big-bang, darwinismos e descrença esnobe. Tu entregas a deus e mente que o passado te faz hoje uma pessoa melhorzinha. E vê se aproveita o ensejo e pede para tua companheira voltar à velha forma.
Não que mulher grávida não seja bonita, coisa e tal. Basta relevar os inchaços, o nariz indecente, e fazer de conta que nem reparou na pata aqui, pata acolá.

Mas não te desespere, afinal tu já acreditas e a tua fêmea ainda está lá. Não se sabe bem onde, mas está. É só fazeres um esforço que tu enxergas. Se não, acalma-te. Depois do parto o nariz volta ao normal e a leveza do andar se refaz.

Mas nem te vai alegrando e podes ir recolhendo os assanhamentos. Aquele corpo e o tempo já não te pertencem. É tudo-tudo para a cria.
Mas daí tu olhas a pequena rindo com os olhos, e não terás tido na vida gozo maior. A vampirinha sanguessuga, que te cansa e te grita em qualquer hora e geralmente em todas elas, é tua costela, rins e unhas. É com teu braço que acalma e descansa.

Então tu te pegas capaz de todo absurdo. Plantas aipim numa nesga de pátio. Cavas um buraco até bem no fundo para dele brotar um poço - enfias um projétil na testa de qualquer alguém. Invocas a ti a ardência, a dor, a angústia, a existência trêmula. A ti chamas o constrangimento, a penúria, o medo, a dívida, o finar, se isso poupar os olhos do rebento do vislumbre de uma só mancha, de uma sombreadinha só de mácula.

E aí, irmão, a vida tua pode acabar-se como uma figueira velha tombando em final de tarde à beira de uma lagoa, porque em tuas raízes farão casa os lambaris. Como pontinhos prateados de luz ao entardecer eles chacoalharão as águas. Chafurdarão a madeira que apodrece fazendo do leito um caldo escuro, próspero, vigoroso. E o teu tempo, ainda depois do teu último galho tordo já afogado, desaparecido no juncal, será o teu tempo.
Sempre.

terça-feira, fevereiro 10

Vende-se

O Blog do Rost a partir de março abrirá espaço para comerciais, anúncios, propagandas, reclames. Por natureza, perfil, gosto, e afinidade do autor, os parceiros anunciantes da página oferecerão o esdrúxulo, o improvável, a anomalia, a sacanagem. Enfim, tudo que, legalmente e tributado, qualquer vivente encontra a meia dúzia de passos de casa: pílulas abortivas, bolinhas moderadoras de apetite, confetes anti-depressivos, santos de gesso mal pintados, rosários de polipropileno e náilon, paus de borracha, xoxotas de silicone. E tudo mais, é claro, que modere o estresse e espante cara feia.
Quisera eu flutuar no incólume, no imaculado, a margem de pressões comerciais. Mas nos dias de hoje, esqueçam.
Aos leitores acalmo garantindo que o departamento comercial estará atento à ética, moral e bons hábitos. No entanto, como o blog é lido mundo afora, das Américas a Eurásia, da Indochina a ponte de Bering, ele não fará restrição a costumes, desejos, necessidades e preferências. Ou seja, se pagar imposto e a vigilância sanitária bancar, tá liberado. Compra quem quer, repudia quem tem juízo, medo, restrições, frescura.
C'est la vie.

sexta-feira, fevereiro 6

Obrigado por fumar


“Obrigado por fumar” é um bom filme. O enredo, embora seja ficcional, explicita números, estatísticas e estratégias da indústria do fumo nos Estados Unidos. O final é chato. Estoura numa catarse moral desnecessária. Ttratando-se de uma produção americana, nada de estranho.
O intento do preâmbulo acima? Nenhum. Só estou enrolando para começar a escrever sobre o que anda me aporrinhando o saco ultimamente: as infames patrulhinhas do tabaco.
Tá certo, os fumantes abusaram por tempo demasiado. Era pito no elevador, no escritório, no restaurante. Até em festa de final de ano em jardim de infância fumava-se sem perdão e culpa. A gurizada lá, dançando o pau de fita, e os marmanjos pelos cantos fingindo assistir, e é claro, fumando. Cagava-se para as criancinhas. Dava-se um foda-se aos palatos da mesa vizinha. Tripudiava-se da asma e alergia dos colegas de repartição. Afinal, falta de ar na época quem tinha eram as crianças e as mulheres, e olhe lá. Que ofegassem com parcimônia. Se fosse homem então... Para coçar as narinas e espirrar as sensibilidades o sujeito tinha que ter paleta, já que lhe recairia no ato o peso da suspeita sobre suas preferências e necessidades. Incomodação em demasia com a fumaça, só tinha o vivente de pouca convicção que na hora de engatar a marcha troca a primeira pela ré.
Era abuso por demais, bem verdade que isso lá era. Flertava-se com a maldade. Enfumaçar sem um mínimo de constrangimento o ar de crianças que sequer firmavam o pescoço, ou por em dúvida a masculinidade de um sujeito por conta de um par de narinas inflamadas era no mínimo sacanagem. A tanto descaso havia mesmo urgência de bridão e freio. Contudo, no entanto, todavia, nesses tempos do agora, do politicamente correto - expressão essa que convenhamos, beira a gozação – em que o iogurte, o brócolis, os chazinhos, corridinhas e panturrilhas firmes ascenderam a pedestais sacrossantos, a perseguição aos fumantes começa a cheirar mal.
É patrulha demais. Não fume ali, também não acolá. Dentro é proibido, e lá fora não pode não, pois a lei se espicha até pra lá do terraço. Se a coisa continuar na passada que vai é bem capaz de termos de enfrentar milícias pelos cantos e esquinas arrancando filtros aos tapas. E daí quero só ver. Contra-revoluções costumam ser sangrentas. Liberté, Egalité. Já a Fraternité, esqueçam e engulam as queixas. Robespierre, se bem me lembro, meteu na guilhotina até a constituição. Deu no que deu. Saiu o rei sol broxão e entrou o perfumoso peruquento cortador de cabeças. Derrubaram a Bastilha, cortaram as gargantas, vizinho dedurou vizinho só pra comer um a mulher do outro, e acabou que os franceses tiveram que aguentar o nanico chapeludo e o retorno do absolutismo.

No caso da iminente convulsão dos fumega contra os não fumega, banco dez por um como ressurgirão das cinzas o Minister, o Continental, e de quebra, entre as castas de pé no chão, o Belmonte, ovacionado e em glória. Isso porque aos fumega, se falta à convicção de nobreza de causa, sobra fissura - muita fissura, além da necessidade intrínseca do homem por Liberté, sem que ninguém lhe encha o sagrado e enrugado saco.
E aos não fumega o que resta? Pouco, quase nada. As fileiras são frágeis; os soldados, dispersos. Faltam-lhes marcos de unidade como o vício e o desejo em dor física e psicológica, coisas que o inimigo tem de balde. De qualquer forma, o caos busca equilíbrio, e um dia os opostos se estabilizam. Depois do sangue, da decapitação de filtros e cabeças, os fumega serão mais respeitosos nos espaços e delicadezas, e os não fumega, mais tolerantes nos cafés, bares e porões.