quarta-feira, julho 13

Árvore Amarela


Tinha uma árvore amarela lá.
Ficava na curva da lomba
No calombo mais alto do barranco.

O tronco se erguia firme sustentado
Por raízes bem grossas e expandidas
Muito bem boas de esfolar os dedos num tropicão.
A coisa de quase dois metros –
Ou era eu pequeno demais
E tudo me parecia demasiado alto-
Ele dividia-se em dois e abria-se
Em forquilha. E depois em outras
Tantas mais até à galhada fina
Onde não nos arriscávamos a chegar.

Àquela altura toda até
Coragem de guri rende-se ao freio.
O tombo no fim do barranco
Seria grande demais.
Podia-se quebrar o pescoço
Fácil, fácil, ou definhar-se na andada
Do espinho da Coroa de Cristo
Na fronteira com a calçada.

Lembro do meu irmão de cabelos quase brancos
E de minha irmã quase parecida comigo,
Coisa de barbeiro setentista de um único corte -
Ou talvez àquela época, quem sabe, nós até nos parecêssemos,
Sabe-se lá (!) - escalando a portentosa aos abraços.

Dela, com os olhos além do baixio, enxergávamos
A linha do fim do vale e as montanhas
Que prenunciam a grande serra.
No meio do caminho das vistas, se fosse por julho,
Tínhamos a neblina do rio, que até hoje,
Lufa e levanta-se para quem se dispõe a
A vislumbrá-la para mais longe das ocupações
E dos tijolos assentados no charco.
Era uma umidade só no inverno
E um timbre trêmulo no mormaço do verão.
Era só olhar e ver.

Por aqueles lados é que se
Avolumavam os temporais.
Quando as nuvens rompiam o alto
Das escarpas incitadas pelo vento
Patagônico o mundo fazia juras
De desabar-se.
Entrar para a casa, procurar abrigo?
Qual nada!

Enquanto o gelo da ventania
E a lambada dos galhos não nos açoitasse
Até a espinha, não descíamos.
Só quando o uivo do mau tempo
Extremava-se em fúria
E a chuva fazia-se em agulhas e pregos
É que escorregávamos tronco abaixo.

Daí era bom tomar um banho bem quente
E pedir para a mãe ferver leite com pó ruim de chocolate
Para reavivar as tripas.
E então espiar da sala bem envidraçada e lacrada
As pedras de gelo pipocando no pátio.
Ô, barulho bom...
Confusão gostosa de telhas e granizo,
De água correndo com força para
O sumidouro da Três Marias.

Chato era saber que alguém teria
Que logo em breve sair para abrir o portão
Para o pai. Isso era ruim... Ruim demais.
Ele bem que podia deixar a merda do carro na parreira
E entrar pela frente.
Porra nenhuma (!), alguém tinha que ir.
E esse alguém não podia ser a mãe
Se quiséssemos evitar falatório e confusão.
O Pinto era pequeno demais,
A Betina, a guria e a mais velha – eu (?),
Eu era o homenzinho - eu sou o do meio.
A merda do cadeado seco de óleo
Ia acabar de foder com tudo. Qualquer imbecil preveria.
Molhaceira do caralho... Pantufas ensopadas...
Raiva do pai.

Em uma manhã, depois de uma noite de vento,
Acordamos e vimos o Ipê no chão,
E não reconhecemos o retrato da casa
E, muito menos, a linha do céu para lá do banhado
Que margeava o cânhamo
E contrasta com o verde da serra geral.

Uma outra árvore amarela
Foi plantada no calombo na curva da lomba,
E lá ainda está. Mas não é a mesma - nunca foi.
É que quando ela por fim ganhou corpo
Para abrigar a alcatéia de nossas almas
Já havíamos crescido demais,
Nos separado demais,
Acreditado que toda e qualquer
Leveza, cedo ou tarde,
Acaba tombando no repuxo do insustentável.

Quantas tolices nos contam,
E que por fim, subjugados,
Depositamos fé.

Pois agora,
Nem preciso de ipê vestido de amarelo
Para enxergar mais adiante.
Pois agora,
Eu também sou a escarpa, o granizo, o vento,
A minha garganta - e grito muito mais.

sábado, julho 9

Sábado Catharina



Sábado Catharina

Indolência no tempo
À toa na trilha do sol
Na preguiça do dia.

Casca de laranja fervida, morango e leite.
E Canjiquinhas, pinhão, pães e requeijão,
Capelete e copa com limão.

Sábado Catharina

Clarinha e cocô no ralo.
Pincéis atômicos e manchas
Na lousa que dependurei.

Geladeira apitando e pia cheia,
Mila limpando remela onde não deve -
As pequenas algazarras do depois do almoço.

Sábado Catharina

Suco entornando no
Sobe e desce da cama alta -
Inquieta-se a miúda no deita e levanta.

Sono leve e descanso na
Tonteira boa que exige a digestão enquanto labuta.
Barulhinhos extinguindo-se nas lonjuras de quem adormece.

Sábado Catharina

Tarde que anda e apetece.
Brinca, pula - se veste de armadilha e taco
Para enjaular e cutucar quasares de querer.

Só nós dois e a noite agora no mundo.
Suor e trapézio sem panos e rede - cama
Esculhambada por folia e malabares.

Sábado Catharina

quarta-feira, julho 6

Casa



Estou em casa e seguro,
Mas não tenho uma foto tua.
Pouco importa.
Do que menos preciso agora é
De um retrato para te enxergar.
Estás estampada nas paredes,
Cantos, lençóis e cortinado.
Vejo-te e te sinto por todos os lados.
Os meus pulsos latejam o teu nome e
Minhas vértebras esticam-se por teu corpo.

Não compliquemos as coisas.
Eu deveria ter ido,
Tu deverias ter vindo.
Os dias não são carimbos, chancelas ou portais
Que se abrem ou se cerram.
Os dias trasladados sou eu e és tu – junto,
E nos pertencem para fazermos
Deles o que bem entendermos e desejarmos.

Somos o dia, a cada dia, de carne e de osso.
Ensolarado ou plúmbeo;
Rajado, pardo, malhado... Ou lambuzado de muitas tintas.
Estancado por calmarias de Jonas,
Ou acelerado por ventanias que bufam
Velas por todos e quaisquer caminhos.

Não compliquemos as coisas.
Os dias não são correntes, cordoarias ou garateia
Que se amarram ou prendem-se em arrecifes.
Os dias girados sou eu e és tu – junto,
E devem-se curvar a nossa benção para fazermos
Deles o que bem entendermos e desejarmos.

Somos o dia, a cada dia, de veia e de tripa.
Impetuoso ou reticente;
Desconfiado, convicto, trêmulo... Ou de si bem certo.
Incrustado e lento e medroso,
Ou tocado por remos e músculos que
Arvoram-se todos por quaisquer caminhos.

Não compliquemos as coisas.
Eu deveria ter ido,
Tu deverias ter vindo.
Só queríamos, um e outro, eu sei,
Fomentar a saudade, a tesão, as mãos, por mais um dia.
Acontece que parece que já vamos passando por isso
E o que nos compele e resta
É alimentarmo-nos juntos.

Não somos o gás em letreiros ou meia luz e bola de roleta.
Somos o passo que chega e anda,
E que depois se põe e de novo
Nasce a cada nosso santo dia.

Carta

Filha!?...

O pai está longe de ti.
Não por querer, tão amada minha guria.
E por isso mesmo, apesar de longe, acredite,
Estou muito, muito perto,
Como sempre e jamais estive.

Filha!?...
O pai está longe de ti.
É que existem pessoas
Que são incapazes de compreender aquilo
Que chamam de desprendimento e amor.
Elas não são más, só estão perdidas –
Mas saiba que isso não as redime do que fazem.

E o pai, independente do que te façam,
E em que te transformem,
Reconhecerá o teu sono em meus braços,
O teu sorriso, o teu andar,
A tua voz e o nosso abraço.

Filha!?...
Esse teu pai cresceu distante do teu avô
Que hoje vive com as estrelas.
E só eu, o filho, sei o que perdi.
Eu sou teu pai, tão amada minha menina,
E por um segundo sequer te perderei.
Tu cresces a cada dia, minha guria mais linda deste mundo,

E o pai, a cada teu instante, não duvides, cresce contigo.
E o pai, independente do que te façam,
E em que te transformem,
Reconhecerá o teu sono em meus braços
E te abraçará, mesmo que voltes para mim,
Caricaturada de monstro.

Filha!?...
Ainda que tu te esqueças,
Basta encostar o teu queixo no teu peito, e me reconhecerás.
Basta esticares os teus dedos ao encontro do sol, e me terás.
O pai, ainda que morto, te alcançará, filha.
Olhe para mim quando quiseres
E aliviarei as tuas angustias, te prometo.

Lembra Nina!
Lembre de nossa bicicleta,
Do descansar abraçadinhos,
De nossas cantorias, cães, febres e sopas.
Quem manda na Pipa e na Sol?
- Já para dentro, diga a elas.

Lembra Nina!
Lembre de meus ombros - a tua garupa e transporte.
E do vento e das folhas que nos faziam voar.
A tua memória cuidará de mim, minha filha,
E daqui, ou das estrelas, o teu pai por ti zela, e sempre olhará.

E o pai, independente do que te façam,
E em que te transformem,
Reconhecerá o teu sono em meus braços,
O teu sorriso e o teu andar.

Upa, minha guriazinha....
Quando me leres,
Dê um upa bem gostoso neste teu pai,
Minha guria mais linda deste mundo.

Do papai Marco Rost
Para minha muito amada filha Nina.

segunda-feira, junho 20

Tempo


O céu está com um umbigão enorme
Apontado para o mar -
Prateando e embarrigando o mar.
Tempo, Tempo, Tempo...
Precisamos de um novo acordo.

Releve os meus desperdícios
E o pouco caso que sempre fiz de ti.
Honrarei as promissórias, não tenhas dúvida,
Mas arrolemos a dívida.

Preciso de tempo, Tempo.
Preciso de mais crédito e de teu lastro.
Não laves as mãos agora se afinal,
É em teu caminho que redescubro o bom passo.

Releve a minha empáfia
E a descortesia que a ti sempre impus.
Honrarei os valores, que a nós fique claro,
Mas renegociemos as prestações, os juros e a multa.

Preciso de tempo, Tempo.
Sei que és infinitamente mais justo do que eu,
Assim como sei que tens a impiedade por premissa e razão.
Mas se então és o reto tutor, me deixe caminhar para mais adiante.

Releve a minha falta de discernimento e o meu desdém.
Bem sabes que apesar da hipocrisia nunca me desviei de fato de tua cartilha.
Pelo contrário, a segui a risca.
Eu só não esperava que a essa altura tivesse tamanha sede por ti.
Desmereci e fui relapso, confesso, a nossa aliança.
Mas com as rótulas e o chão te peço:
Perdoe, ao menos por enquanto, um pobre tolo.

Preciso de tempo, Tempo.
Preciso de mais crédito e de teu lastro.
Honrarei até a tua usura, tenhas certeza,
Mas alinhavemos novas ratificações –
Três décadas me são imperativas. O quê achas?

E nem por um instante, em troca,
Pedirei-lhe que esqueças do fio de tu espada.
Pelo contrário, rogo-te que o afie ainda
Mais em escambo por uma penca de anos.
Anos que a mim são caros,
E que para ti afinal, não passam de lapsos e piscares.
E então sim... Aí sim... Leve minha cabeça.

É que preciso de tempo, Tempo.
É que fiz uma guria e encontrei uma mulher
Que requerem o meu, e o teu tempo.
Se concordares, eu e tu - empenhemos novo trato.
Juro-te que por nova apólice te dou mais uma vida.
Mas com elas, terás que te entender depois. E te confesso,
Para que fique mais interessante,
As ensinarei sobre os atalhos para burlar-te.

O céu está com um umbigão enorme
Apontado para o mar -
Prateando e embarrigando o mar.
Tempo, Tempo, Tempo...
Precisamos de um novo acordo.

quinta-feira, junho 16

Travado

Travado em frente à tela.
Travado e em pelo de cobertor e alfabeto.

Pelado de verbo, adjetivações, pronomes e sintaxe.
Pelado de concordância, de conjugações pretéritas e futuras.
Falta-me até a soldadesca de substantivos, indefinidos ou não.
Hoje consoantes e vogais abandonaram-me
Repudiando danças e cópula,
Negando-se a brincadeira do teclado com as mãos.

De mim nada se compassa, rabisca, ou se forma.

Hoje está forçado, doído, espremido... Uma bagaça.
A porra do freio de mão embestou de ficar puxado.
As engrenagens não se encaixam,
Os pistões não empinam,
As velas não faíscam.
Fugiu a correia, o câmbio,
O cabo de aceleração, o pedal, e também a direção.
Falta-me a ignição, a combustão, os rolamentos, a graxa.

Hoje a consecução mandou a frigidez,
O estéril e a inaptidão, em seu lugar.
Meu útero enrugou,
Minhas trompas estão ao avesso -
Minha vagina, lacrada e seca.
Não consigo sequer abrir as pernas
Ou subir os dedos pelas virilhas.

Não tenho cheiro, gosto, ou umidade.

De mim nada precipita-se, escorrega, ou se pari.
Hoje me surrupiaram as musas,
Os deuses, as partituras, a flauta e as cordas.
Tiraram-me o canto, a voz, o timbre.
Os fonemas diluíram-se na rouquidão.
Minha língua é uma cãibra e meus lábios estão agrilhoados por crinas em pontos.
Não consigo sequer soprar um conto
Ou assobiar sandices.
Tão pouco sussurrar pequenas e miraculosas inverdades.

Falta-me o bisturi,
Sobra-me o cansaço.

Ao menos não vou dormir de castigo - eu acho.
Vai ver tudo de muito disso, é que dia sim dia não,
Eu acabe sentindo frio.
Nada de novo – os mesmos bosques, barbas de pau, faunos e gralhas.
Tudo do mais do mesmo, desde pequenininho.
Muito bom e ao meu bem que por agora,
Flutua entre as copas uma mulher branca
Que trás aos ombros azulões, canários e calafates
A alumiar. E que diz meu nome, e do travesseiro, sonolenta, pergunta:
“Marco, o que foi que te deu hoje?”

quarta-feira, junho 15

Putz



Putz... Gosto de ti pra caralho!

Dos teus pés inquietos que não caminham, mas assim saltitam.
Do teu olhar ladeado que me vê
Enquanto eu vou construindo um mundo.

Do que escreves e me mandas
Com Anaís e ópio a te regar.
Gosto da poesia que te engole,
Das noites que não te tenho
Mas que nelas estás.

Gosto das tuas pernas sobre as minhas enquanto tagarelamos sentados,
De tentar prender inutilmente teu cinto com um clips.
De roubar teu copo, de dividir os talheres, de catar as alcaparras para ti.
Do que me dizes e te escapa de tua língua amor - espontaneidade.

Putz... Gosto de ti pra caralho!
E do receio que me atenta por gostar
De ti, acho que tanto assim.

Repouse....

quinta-feira, junho 9

Joaninha



Não fique triste, apenas chore.
As lágrimas desintoxicarão o mundo
E o sorriso virá como bom império.

Virá como as anáguas dançam com o vento,
Como celofane colorido rodopiando já solto do arame
Em noite estrelada de São João.

Virá branco como nascem os primeiros dentes de uma criança,
Macio feito à fruta rupestre que viaja
No bico de um passarinho para nova e boa terra.

Virá desprendido do ontem
Como uma seta, livre da retenção da besta,
Corta o ar sem importar-se com o alvo.

Não fique triste, apenas chore.
As lágrimas purificarão o mundo
E o sorriso assentar-se-á como bom tempo.

Assentar-se-á como o musgo cobre a rocha fria
E aveluda as quinas de pontas e retalhos
Cegando o fio do corte.

Assentar-se-á como a joaninha de bolinhas pretas
Repousa no lustro da folha da pitangueira
Zunindo nas manhãs cálidas de primavera.

Assentar-se-á como se assenta uma boa avó
Na cadeira de balanço na vigília dos netos
Com o brilho sereno de quem bem já desentrançou a vida.

Não fique triste, apenas chore.
E depois fique risonha até aquelas tuas marquinhas que lembram parênteses,
Cada qual do seu lado esticar-se, abrigando o teu sorriso.

quarta-feira, junho 8

Ressurreição


Ouvi dizer que alguns bons amigos andam dizendo que estou diferente,
Mas eu acho que só estou de retorno.
Saindo das ravinas de águas mau cheirosas,
Deixando os guinchos das hordas baixas para trás.

Os mares andaram turbulentos e espumados. Infindáveis monstros de sal marinho se sucederam a abalroar a minha nave. Uns tinham olhos e narizes enormes, outros, couro e escamas de serra. Alguns tinham presas tão longas que poderiam triturar rochas e montanhas. Tinham tentáculos, caudas de rebenque, garras e esporões do tamanho de arcos.

A terra andou deserta, seca e erodida. No horizonte nem miragem se avolumava.
A planície se alongava num alaranjado turvo exalando um mormaço pestilento.
Os lábios deram lugar às feridas, a testa as bandagens, as orelhas e nuca a carne morta.
Os olhos eram pus, a pele um derretimento - o corpo, todo uma carcaça.

Ouvi dizer que estou diferente,
Mas eu acho que só estou de retorno.
Saindo do covil das almas mortas,
Deixando os guinchos das hordas baixas para trás.

Medusas, Minotauros, Hidras, Krakens... Senhores do inferno.
Derrotados, viciados, ladrões, assassinos, putas...Cobradores de impostos.
Bruxas, demônios, leprosos, mercenários... Vendedores de relíquias.
Escuridão, azia, vômito, aneurismas... Zeladores de incongruências.

Casas mal vividas, salas repartidas, quartos mofados, camas vazias.
Plagas desertas, córregos estanques, folhas secas, capim queimado.
Praça sem coreto, chafarizes oxidados, bancos apodrecidos, gangorras trincadas.
Alianças equivocadas, ouro de mentira, filha feita com o imprestável.

Ouvi dizer que alguns bons amigos andam dizendo que estou diferente,
Mas eu acho que só estou de retorno.
Saindo das sendas do mau feitiço,
Deixando os relinchos das hordas baixas para trás.

terça-feira, junho 7

Aurora


O vento sul bate desde ontem à noite arrebentando com as castanheiras.
O doido fez um rebuliço danado à madrugada inteira:
Arrancou roupas do varal, embolou as nuvens,
Derrubou latas, jogou os baldes longe.
Fez graça com a bacia do molho dos panos de prato que
Rodou feito carrossel pelo pátio.
Mas trouxe por fim na manhã, o sol para a janela.
Precisava de tanta algazarra, o Malazarte?
Tem granola, suco de soja de laranja. Pão, iogurte, frutas, manteiga nova e queijo.
A mesa é pequena, mas a gente cabe nela, os farelos é que se entendam com o chão.

Perdi muito tempo com gente que fala demais ser ter nada a dizer.

Coloquei as tuas meias, não achei nada na gaveta e nem lá fora.
Ficou bom, mas tem um negócio rosa nelas... Não atrapalha ou incomoda.
Agora já dá para caminhar, além do mais as cadelas estão indóceis no portão.
Na volta tira as tuas coisas do chão,
Coloca aquele monte de xampus e cremes no banheiro.
Abre espaço do lado de lá do armário,
Tá sobrando um monte de cabide.
Vê se pendura às coisas.
Eu e a Nina (?)... A gente vai gostar.

Passei muito tempo com gente que fala demais sem ter nada a dizer.

Tira o teu carro, o meu ficou no Jacir e na Marilza, foste tu quem nos trouxeste.
A gente passa na farmácia compra manteiga de cacau
E depois almoça Tilápia com gostinho de limão e de terra.
E depois que almoçarmos a gente volta para casa
Para cairmos de novo na cama. Com esse vento encanando
É bom colocar lençol, manta e edredom.
Vai ficar quentinho com a gente lá embaixo.

Muito tempo...

O dia vai se deitando devagar, mais amarelado do que de costume.
No cômodo ao lado tem um monte de cobertas
Sobre a cama, e sob elas, um sono de pupa.
Pupa, pupa, pupa...
Antes de acordá-la molho os xaxins e alamandas.
Depois paro na porta do quarto e a vejo com as ágatas entre os seios.
Não tem jeito, amanhã é segunda.
Pega, toma, me abraça...
Leva um Neruda, ao menos.

sexta-feira, junho 3

Branca


Quinta - passa das vinte uma.
Quase em casa... O cheiro dela está lá.
Ficou da noite passada, ficou de noites atrás.

Conto isso para ela pelas teclas apertadas do celular
E ela responde e diz que o gosto de minha boca está com ela.
Ficou da noite passada, ficou de noites atrás.

Posso ver tua ponta de pés catapultando o teu corpo
Um pouco mais para o alto - sentir tua boca tocando a minha.
Posso ver teus olhos sorridos com jeito de emaconhados.

Tu passaste o dia procurando anomalias, possibilidades de acidentes.
Fazendo relatórios imensos sobre buracos, pó de ferro, capacetes e ausências de luvas.
Passei o dia preocupado com os cabos e a transmissão simultânea.

Passei à tarde com o teu sorriso róseo,
Com o gosto do caldo de aipim esverdeado pela couve.
Passaste à hora depois do almoço e das planilhas, sonolenta.

Mas a fábrica não pegou fogo, afinal.
Nenhum infeliz teve a sorte de acabar o dia decepado.
A transmissão também deu certo, foi tudo bem... Todos estão satisfeitos - até amanhã.

Teu carro está com pneus novos, ora essa!
Tu fizeste as unhas correndo e saíste apressada.
Eu fiz a barba e achei um perfume velho para passar no rosto.

O placar está por quanto?
Quantos dias sem acidentes?
Há quanto o gelo das barrigas não trazia medo e faceirice?

Há quanto tempo não ríamos por qualquer
Bobagem até a dor exercitar os abdomens?
Já nem poderíamos nos lembrar... E nem devemos, Catharina.

De nossa esquina se estende uma rua, e logo adiante uma avenida.
E depois da avenida, se estica uma estrada,
E pela estrada, dormitam os desvios, as vicinais, a luz e a brita.

Por ela quebram-se noites intermináveis.
Os passados vividos, sofridos, alquebrados, corrompidos.
Desfazem-se as tristezas - cristaliza-se o sal.

E da noite quer nascer o dia.
E de o vivido, erguer-se um andaime.
E do sal, pontear o gosto, de novo... Catharina....

Tá bom...tá bom!
Se tu dizes... Vou tentar dormir com esse cara, Deus,
Ainda que prefira repousar contigo.

Achei teu brinco...

sexta-feira, maio 27

Catharina


Conheci uma guria...

É bem bacana ela.
É bem bonita, assim falando mesmo de verdade.
Mas a gente anda só, do jeito dela lá ela, e cá eu do meu jeito,
Permitindo por frestas algumas quantas espiadelas.
Querendo saber um poquito más um sobre o outro,
Anunciando-nos em gotas, um e outro em suas falas.

É saliente esta guria.
É bem luzidia ela, e senhora do seu bom cheiro.
Daquele cheiro que dispensa perfumes em frascos,
Daquele cheiro que ninguém imita,
Que suscita imaginação, faro e palato.

É bem bacana ela.
É bem bonita, assim falando mesmo de verdade.
Mas a gente anda só, do jeito dela lá ela, e cá eu do meu jeito,
Equilibrando nas linhas das palmas das mãos improváveis bússolas.
Querendo saber um poquito más um sobre o outro,
Revelando-nos devagar, um e outro em suas arcas.

É ereta esta guria.
É bem alinhavada ela, e dona de seu brilho.
Daquele brilho que dispensa abajur e lâmpada,
Daquele brilho que só se propaga se for por ela,
Que suscita agulhas, carretéis, pequenas sombras em novelos.

É bem bacana ela.
É bem bonita, assim falando mesmo de verdade.
Mas a gente anda só, do jeito dela lá ela, e cá eu do meu jeito,
Atiçando os pontos alaranjados no carvão ainda quase todo preto.
Querendo saber um poquito más um sobre o outro,
Assoprando-nos com cuidado, um e outro em seus hálitos.

É clara esta guria.
É bem acastanhada ela, e segura de sua cor.
Daquela cor que pinta os olhos,
Daquela cor que borra e expande a aura,
Que suscita a mistura das tintas sobre cavaletes e telas.

É bem bacana ela.
É bem bonita, assim falando mesmo de verdade.
Mas a gente anda só, do jeito dela lá ela, e cá eu do meu jeito,
Cutucando os pés, cotovelos, braços e emendas.
Querendo saber um poquito más um sobre o outro,
Sentindo-nos por rótulas que se raspam ou encaixam, um e outro em seus membros.

É esverdeada esta guria.
É bem torneada ela, e dona de seu contorno.
Daquele contorno que é traço, mas também é mancha,
Daquele contorno que alinha, mas também entorta,
Que suscita o oblíquo, círculos, intersecções e alamedas.

É gateada esta guria.
É bem um sussurro ela no andar das unhas dos dedos dela.
Daquelas unhas que bem quero continuar a vê-las,
Daquelas unhas que bem quero sentir percorrendo a noite,
Que suscita as costas a pequenas fissuras, arranhões meio afobados.

Conheci uma guria...

Esfíncter



Ando numa merda desgraçada. Daquela merda que cheira feito cu em cancro.
Carro velho quebradiço, calças surradas, cuecas sem elástico.
Taxas de luz e água sempre atrasadas. Tem mês que quando aponto na esquina já miro de longe a caixa de luz para ver se o pontinho vermelho continua piscando. Se pisca, respiro aliviado, já sei que vou acender as lâmpadas e tomar banho quente.
Do contrário, velas e ducha fria. Tropeços e impropérios.
E vós sabeis, ou não, que quando a bosta chega à tamanha grandeza, a vida torna-se uma fossa mal cavada fermentando um caldo grosso que respinga feito um vulcãozinho raso na planície, fumegando pequenas tragédias cotidianas.

Quando a coisa chega a esse ponto tudo vira susto.
Se tilintar o telefone, tu pulas.
Se a cachorrada empreender arranque no quintal, tu pulas.
Se um galho arranhar a janela, tu pulas.
Se um fusca estourar um peido na redução brusca das marchas, tu pulas, mais ainda.
Mesmo que tu não tenhas nascido de susto e que, portanto, tu não sejas por natureza assustado, tu pularás, creias nisso.

Engraçado é que já houve uma época em que eu associava essa condição fecal ao uma espécie de romantismo, esperando dela o útero da musa.
Engraçado, e muitos tapas em minha cara, é que nessa época eu não escrevia nada, ou escrevia um monte de besteiras. Tantas como agora.

É fácil ser romântico quando as coisas não efervescem ou fedem ao sol.
É fácil quando as coisas continuam te permitindo o sono.
Desejar o esterco para que ele seja gatilho de inspiração é uma coisa.
Já ele esmagado por entre o comprimento dos dedos (?), é bem outra.

Às vezes tenho vontade de armas o tabuleiro para o copo, ou dar um pulo num centro espírita. Chamar para um colóquiozinho, Milleres, Bukoviskes, Rimbaudes, Plínios Marcos.
Seria só para ter certeza que muito antes de mim eles já haviam sacado tudo há um tempão, e por isso escreviam.
A merda fede, não digo novidade. É só, que quando ela se esparrama por certas páginas tem o dom de camuflar-se e parecer apetitosa.

Quando o copo, se o copo deslizar, eles mandar-me-iam tomar no cu, estou certo. Arremessariam- o contra a parede, enterrariam os dedos no meu rabo, e me fariam lamber a casca de feijão mal digerida que estava grudada na parede do meu reto.
- Qual merda o quê!?, gritariam
- Não basta sentir o cheiro dela, otário, é preciso comê-la. Enfie no cu os cacos do copo junto com o teu médium, vociferariam.
- Coma o que tu cagas ou cala-te, maquete de pequeno mentecapto. Engula aquilo que evacuas ou te banharás eternamente com o que espirras com a força do teu esfíncter.

É.... Eles diriam...
É que a merda anda tanta.....

terça-feira, maio 3

Páscoa


De assassinos e suicidas todos nós temos um tanto e um pouco – é o preço para quem nasce. Basta escorregarmos vagina abaixo, ou sermos arrancando com hora e dia marcados através do corte no ventre encaixados entre dedos estranhos para começarmos a fenecer, e logo depois, a matar.
A condição é idiossincrática para quem, por algum motivo, vem para o mundo.

A questão não é o assassínio em si, puxar um gatilho e pronto.
Mas sim de que assassinar num repente faz parte de nossa natureza. É telúrico, atávico, instintivo, e, sobretudo, o passo da sobrevivência..
Também não é a de cortar os pulsos ou enfiar um cano gelado na própria garganta e disparar o ferrolho. A agressão contra a própria existência é contraditória, esfola o afã de perpetuação.
Mas sim, é questão, de que gente quando vive, mata e é morta todos os dias, a pequenos bocados.

Nosso primeiro e inexorável impulso de vida, pode bem predar, pode bem liquidar quem entre contrações e fincadas lancinantes se rasga para nos jogar para o chão. Mas a quem chega envolto no sebo da placenta, muito pouco isso importa – não há ponderação ou recuo, só há o impulso. E logo em seguida mais e mais impulsos de experimentação e de lambuzar-se em um mundo que está sempre mais adiante, e de gente que nos mina a saúde e nos arremessa para umidade da cova.

Nada vem de graça, nem mesmo a graça de Deus.
Tão pouco, o equívoco da maternidade.

A pólvora seca e esquenta ao tempo que esticamos, e o nó na corda aperta a cada passo dado.
E não adianta amansar, ou termos boa vontade.
Essa é a língua fosca daqueles que engolem dedos, mãos e braços.
Gente que se apossa de brasões dissimulando, longe do sangue, brincando no tabuleiro.
Essa é a língua daqueles a quem falta bandeira e perdem-se em camalionices


A morte não é a mãe, em uma frase por telefone, matando a filha.
A morte não é mais um homem pelado em frente à filha miúda de um outro.

A morte é teu dia que começa com o café na manhã, passa pela indolência de tua tarde, e descansa na noite de tua cabeça torta, deslumbrada, incapaz de perceber o que não seja fruto e vontade de tua confusão.
A morte é a tua casa, o pátio a quem nuca te permitiu, é a tua varanda vazia de plantas.
A morte é teu pai, a tua mãe, quem te cerca e te esconde.

A morte está em teus dedos, em teu toque mudo, nas tuas calças e sapatos de revistas couché.
Ela cresce nas tuas sombras, nos teus fios de cabelos grossos, aramados, secos pelas tintas.
Ela se enreda por tuas canelas feias, coxas gordas, pentelhos encravados e joanetes.
Ela caminha nos teus olhos plúmbeos e na tua língua grossa de papilas cegas que invade sem sutileza, desprovida de graça, atarantada e ansiosa.
Ela é a gosma dependurada em teus cílios longos de canecalon.

A morte não é a tua copla fraca e sem ritmo.
Não é a poesia que tu és incapaz de sentires ou trançar.
Tão pouco tuas idéias derretidas em coisas que discursas, mas não entendes.
Não é a tua dança esquisita, desengonçada, ou o barulho que fazes ao sorver o leite.

A morte não é tua boca suja sem argumento plausível, ou tuas pílulas.
Não é teus lábios murchos a vomitar ironias ébrias de vinhos.
Vinhos que não produzes e pelos quais, muito menos, pagas a conta.
Ela é o gesto largo, desastrado de afetação.

A morte é a tua escuridão, o teu disfarce. É a tua roupa moderninha.
A morte é teu compasso de ponta incerta incapaz de vislumbrar a emenda do círculo.
A morte é tua vista sem horizonte ricocheteada na amurada de neurônios que não se falam.

De assassinos e suicidas todos nós temos assim, um tanto e muito mais de um pouco.
E na páscoa, ninguém ressuscitou.
Pois então, fodam-se os Lázaros, os Batistas, os Jesuses.
Todos os doutos.

Dois pais mortos.
Valor. Proteção. Punho. Zelo.
Existe uma guria que me acalenta o sono e repousa em meus braços.

terça-feira, abril 19

Morte

Antes de ontem minha ex-mulher
Disse-me que minha filha estava morta.
Há dois dias morri pela primeira vez.

quarta-feira, abril 13

Topadas


Muitas coisas me irritam, aliás, me irrito fácil, diga-se de passagem, mas não sem motivo.
E embora possa parecer loucura, não abro mão da irritação. Ela é o adubo que alimenta meu poder de indignação, ainda que a contra-indicação potencialize uma úlcera perigosa, que no final das contas, cultivo com esmero.
E são as pequenas, e aparentemente tolas coisas do dia a dia, que me tiram do sério. Provavelmente porque as maiores já encheram há muito meu pote.
Mas enfim... Um copo quebrado na hora errada, um pneu furado, um nó no cadarço teimando em desatar - contratempos triviais, insignificâncias, mas donas de sombras gordas.

Como sou assim, irritadiço por natureza, mas não sem motivo, insisto e faço questão de assim deixar claro ao fiel leitor, resolvi a título de catarse escrever sobre as cinco mais.
A princípio a idéia era ranqueá-las. Mas como a tarefa pareceu-me árdua demais por exigir metodologia científica, e eu cá estou muito pouco inclinado a exercê-la, vou restringir-me a explaná-las. O leitor, por cognição e afinidade, fique a vontade para ordená-las, se assim desejar, por ordem hierárquica.

Irrita-me profundamente quando objetos funcionais residentes na casa tornam-se temperamentais e embestam em não funcionar, negando-se a índole de suas serventias justamente na hora mais imprópria.
Voltar para a casa depois de um dia difícil com uma filha de dois anos cansada, por exemplo, sujeita à irritação. Eu louco para dar um banho rápido na guria e depois deitá-la no sofá já com a mamadeira enfiada na boca com Monstros SA na tela, de modo enfim ela relaxar, e aí, o DVD não toca.
Funcionava antes o mentecapto! Rodou ainda hoje sem problema algum. Porém no instante delicado em que um movimento em falso pode desencadear um cataclismo, ele faz o quê? Nega fogo, o puto.
Minha vontade é espancá-lo.
Desejo que ele nunca tivesse sido inventado e que os canais abertos transmitissem como nos velhos e não muito distantes tempos desenhos animados.
Sopra daqui, aperta dali, e nada.
Tapinhas comedidos.
Ejeta, enfia, enfia, ejeta... Rezas, por favores - amores de Deus.
Esfrega CD, esfrega CD. Álcool não! Acetona, acetona – pára, pára, é pior!
Água, água. Algodão e água – limpa.
- Espera, o pai vai conseguir.
Uma lágrima sincera despenca dos meus cílios na esperança da máquina de mau gênio compadecer-se... bem capaz....
Uma bordoada convicta, e o palhaço sem graça, pressentindo a fúria, gira.
Bem em tempo...
Anjos e demônios já se anunciavam por trombetas viajando nas gotas de no suor da testa da Nina, e da minha.
Precisava o merda, fazer isso tudo para começar a trabalhar?

Possesso também me deixa a pia e a torneira quando tiram o dia para me sacanear.
Tô lá eu, todo arrumadinho, prontinho para sair, quase atrasado.
Abro a torneira e, chuá...
A porra da pressão de crista enfezada a mando dos cúmplices jorra a água direto para dentro de um dos quadrados da forma de gelo que dormia junto à boca do ralo.
Vão-se a roupa, o chão limpo, e qualquer chance para o exercício da paciência.
Não conto até dez. Não há tempo - o ataque é subido demais. Só aflora-me o instinto.
Penso na marreta. Por sorte dos conspiradores, e minha, ela não está ao alcance.
Resta-me resignar-me.
Mas há de chegar o dia em que mandarei as favas à ponderação e deixarei a marreta à mão. Aí sim, quero ver onde a porca vai torcer o rabo.

E se pia, torneira e pressão abusam da fanfarronice, o que direi dos prendedores de roupas com tendências suicidas.
Pendurar panos no varal já é uma tarefa hercúlea, ao menos para mim, que já estendi coisas demais, entre elas calcinhas que não mereciam o meu empenho, e que já fiz toda a aeróbica que o labor exige.
Quem já não se embananou tentando dar conta de um lençol de casal que excede o comprimento da abertura dos braços enquanto o chão, dissimuladinho, assobia?
É de foder, convenhamos... Ainda mais se tu não andas fodendo.
E aí, como se não bastassem calcinhas e lençóis sem cheiro e marcas, os prendedores começam a atirar-se para o vazio.
Eu coloco o bicho lá no arame e o desalmado cisma em pular para o precipício. Arrebenta-me por último, o acocar-me para pegá-lo rosnando impropérios, e ele zomba mais uma vez, escondendo-se sob as roupas que estavam sobre o meu ombro, e que, com o movimento abrupto dos joelhos, espalham-se pelo chão.

Nos cascos também fico quando alguma coisa some logo depois de eu tê-la colocado nalgum lugar no intuito de assegurar-me que ela não desapareceria.
A maldita repousava em berço pleno. Eu sabia que ela estava lá, e por conta de não estar no lugar usual, eu resolvo tira-la do seu canto de descanso para ela não sumir. Isso, normalmente, minutos antes de eu ter de pegá-la. Acontece que não a coloco em seu lugar de praxe.
E então o que faz a bandida (?), some sem deixar vestígios.
Não há pegadas, restos de fogueiras teimando em consumir-se em carvão, muito menos um rastreador apache.
Não existe cheiro ou qualquer tipo de rastro. Não há testemunhas ou vibrações de passos. Só a certeza de uma conduta absorta e de uma memória fraca para trivialidades desinteressantes, mas que no final, se subestimadas, causam um baita problema.
Ela não podia evaporar assim, foi o tempo de um banho, caralho!
E me emputece mais ainda, ela ter se escafedido no lapso de minha imprudência e idiotice.
Demônios – raios. E nem o Mutley eu tenho.
Custava eu prestar um pouco mais de atenção?
No final, eu até encontro-a, mas e o batimento cardíaco acelerado pelo sofrimento desnecessário, quem banca?

Fechando a lista, e deixar enfim que o leitor faça as suas devidas ponderações, e se desejar, eleja das circunstâncias a que maior carrega a combustão da ira, mas que por fim, inocenta, releva e absolve a irrascibilidade - ainda que eu pudesse enumerar mais uma penca e tanto de rosetas que volte e meia incitam minha irritação - lhes confesso meu quinto inferno: pisar na merda que eu sabia estar ali e que não recolhi, e depois meter o pé em cima.
Tremenda bosta.

Não obstante, do que adianta nojo e xingamentos ao resvalo?
A cagalhança esparramou-se, afinal. Reclamar de quê (?), se eu sempre soube que se não a recolhesse ela se esparramaria.
Um pára-choque arrebentado na cabeça de um cão grande na Dutra foi o sino que não quis ouvir.
O abandono de um amor.
A rejeição de um filho ainda feto.
Babá adolescente, improbidade, canela arrebentada.
Muitos fodam-se cedo demais.
Pílulas de amostras grátis com o lote arrancado da cartela na liturgia do dissipar-se na pós-modernidade transformando gente em nada.
Pouco tudo agora importa. A caganeira sempre esteve lá e lá continua.
Eu a vi, não limpei, e ainda assim percorri a trilha.
Desinfetantes? Qual o quê (!?), Maria Lelé e caras pálidas -
Minha filha dorme no cômodo ao lado.
Flor que vicejou do esterco.

domingo, abril 3

Paladar

Gosto do gosto de buceta branca.
Em verdade gosto de tudo quanto é tipo de buceta.
Bucetas magras, bucetas polpudas, bucetas peludas, bucetas raspadas.
Mas me encantam mesmo as buceta claras.

Melhor ainda se os olhos
Que a acompanham forem verdes
E mudarem de tom conforme o tempo.
Se chover mais escuros, no sol clareados.

Melhor ainda se a pele
Que a veste for alva
Com as veias azuis do abdome
Subindo até o pescoço gentilmente.

Gosto do gosto de buceta branca.
Em verdade meus dois grandes amores
Têm virilhas de leite e pelos amarelos,
Às vezes, na variação das luzes, quase avermelhados.

Melhor ainda que são belas
E de olhos claros, e que as vivi.
E persegui o curso de suas veias,
Das falanges dos dedões às escondidas nos céus das bocas.

Melhor ainda que elas ainda vivem
Traçando seus caminhos, pouco importa
Se distantes dos meus. Nossas vidas
Um dia se bordaram. Muito isso me basta.

Gosto do gosto de buceta branca.
Em verdade não as escolhi,
Elas simplesmente me ganharam
Nas intersecções de seus entroncamentos.

Melhor ainda que me desejaram,
Engoliram-me enquanto os olhos
Que as acompanhavam me davam
O inusitado prazer de ser o agora e o depois.

Melhor ainda que me amaram.
Quiseram-me em suas mesas e
Em seus banhos. E vestiram seus seios rosados
Com minhas blusas sem botões.

Eu gosto mesmo é do gosto de buceta branca.

sábado, abril 2

MUDANÇA


Minha escrivaninha de madeira boa voltou.

No tampo, pequenos ramos de flores
Pintados à mão no pinho retalhado
Nas serras do sul respiram mais uma vez.

Madame antidepressivos de boca suja devolveu.

Meus livros agora estão aos seus lugares.
Respiram no armário de madeira boa e dezesseis vidros
Que veio no mesmo frete, chacoalhando
Por conta do asfalto ruim dos cantos de cá.

Madame antidepressivos de cabeça torta deixou pegar.

Armário e mesa de escrever combinam
Com a carreta de seis bois pitangas levando
Fumo de um lugar para outro lugar, sempre mui longe,
Pintada por pictografia e tintas no couro esticado.

O lanceiro que a conduz, nunca deixei para trás.

Na parede o milongueiro de chapéu, lenço e viola,
Repousa no cobre dedilhando melodias de cordas
Gozando na cor da lenha que agora retorna.
Coisas suas irmãs, que tantas coisas já choraram.

A milonga e as melodias das distâncias, nunca ficaram para trás.

Abro as gavetas, ajeito a papelada.
Nina disse que os livros dela
Devem ficar juntos aos meus em nosso escritório,
Que segundo ela, ficou muito lindo.

Reservo lugar para as ilustrações, para as páginas, para as letras de sonhar.

Os meus espaços são também os dela,
Não há outro jeito senão repartir.
Os sonhos dela serão os meus sonhos,
E suas andanças, minha artrite e meu travar.

Que venham as épocas, os entreveros, a tolerância com alguns grandes sorrisos.
Gargalharemos... Nada nos importa -
Tempos rotos, dias anis...
O que há para saber afinal?

Nossos braços nos abraçam Nina, e estalam todas nossas costelas.

segunda-feira, março 14

Paquiderme















Abandonei cedo demais o caminho dos passarinhos
Tornei-me um paquiderme pesado e velho
Quis me travestir de poesia sem ter vivido
E ajoelhei-me diante da idéia de que só a tristeza cria

Li coisas sem entender cedo demais
Entrelacei meus dedos aos da arrogância
Quis traduzir a mim e a terra
E vendi-me ao sorriso da vaidade julgando-a ser virtude



Entreguei-me a indecência de Deus cedo demais
Flertei com demônios e infernos
Fiz do cinismo e do escárnio altar de bajulação
E tornei-me desertor de mim escondendo-me no ímpeto do ataque

Vesti os trapos do mentecapto cedo demais
Enamorei-me da lágrima do incompreendido para acreditar-me herói
Empunhei sem sangue as dores do mundo
E abandonei-me a pretensão da blasfêmia

Encarnei a obtusidade dos arautos cedo demais
Anunciei as tolices de minha gagueira
Fiz com a idiotice um tapete mal trançado
E acreditei-me o escolhido enquanto ruminava asneiras

Hoje como a poeira do mundo
E me lambo com ela
E me limpo a garganta com ela
E me clareio os olhos com ela
E me destampo os ouvidos com ela
E me descongestiono o nariz com ela
E me arrumo o tato trôpego com ela

E me cuspo o cuspi comprido
E pingente tentando falar através dela

Água-Viva




A madrugada vai alta, o céu marinho.

Canários e pardais de barrigas vazias nas galhadas atiçam o arvoredo.
Os lençóis rotos de insônia e suor seco me tiram da cama mais uma vez.
Tentei de tudo – assisti dois filmes, li cento e cinquenta páginas, tomei uma cacimba d’água, jantei duas vezes.
Fumei uma caralhada de cigarros na varanda, molhei tudo no quintal: primeiro as alamandas, as flores baldias, as orquídeas. Depois as folhagens que plantei sem saber o nome, as bromélias, as espadas de Jorge. A mangueira, o abacateiro, e até os inços que teimam em crescer a revelia do tesourão.
Nada adianta - não durmo.
Olho para as sombras na parede e em vez de patinhos, cavalinhos, girafinhas, amebas, vírus, bactérias, águas-vivas.

Provocam-me as sombras dessas coisas de uma ou poucas células tão pródigas em perpetuarem-se. Centenas de milhões de anos de incubação, de espera em bolhas quentes para então desmembrarem-se - e eis a costela de Adão viajando na explosão cambriana .
Mas foi esticarmos a coluna para começarmos a inventar bobagens e acreditarmos que o tamanho de nosso cérebro e nossas habilidades com gravetos nos catapultariam a testa de tudo que vive.
Se desperto tendo a concordar que a abstração tende a transforma-se nas culturas que bordam o homem, minha insônia me diz que ao tempo que ela nos recria também impõe a marcha ao extermínio.
No espelho, a esta hora da madrugada, meus olhos sussurram-me que quanto mais nossos códigos anabolizam e eletrificam nossos neurônios, mais diminuímos as possibilidades de sobrevivência. Segredam-me eles, mesmo embaraçados e tontos, que nossa capacidade de abstração não é o cano do fuzil, mas a culatra. E que para singrar o tempo, e isso até uma ameba sabe, precisamos abandonar as penduricarias.

Rasuramos palavras em papel ou telas iluminadas, esculpimos deuses e monstros em mármore e madeira. Pintamos a história em manchas inteligíveis, tentamos reproduzir nossos batimentos cardíacos através de caricaturas, traços tortos, retas longas, de círculos em elipse. E assim vamos pincelando desvairadamente aquarelas de fantasmas desviados no empenho do assombro de nossas próprias casas.
Imaginamos negros pernetas, caminhantes de pés virados, coisas ruins com piteira entre os dentes, cobras com cabeças em chamas, répteis que se tornam mulheres, mamíferos do rio que se vestem de homens, fêmeas que se deitam em pedras a afiar os dentes.
Não sabemos pelo que vbale respirar e mergulhamos em mitologia para sobreviver. Negamos-nos a uma vida fantástica em nome da projeção do fantástico.
Se não me engano foi Platão quem apontou o dedo para as caverninhas de águas espelhadas. E que foi Aristóteles quem externou a idéia de que pensa melhor aquele que anda.

A groselha de meus olhos não quer mais refutar a água-viva
- Tu és um caminhante ereto, me diz ela, e deves perceber a deformação de tua coluna. E ainda que isso me assuste, firmo meus olhos na vermelhidão.
Não sou Saci, Curupira, Boitatá, Caipora, Teniaguá, Boto ou Iara.
Sou só o fantasma otário que se esmera em me assombrar.



sexta-feira, fevereiro 4

Musa





Tenho fome

Minha pele seca
Meus caninos enfraquecem
A catarata acinzenta meus olhos

São os anos de inanição, meu amor

Mas ainda olho o derredor com viço
Tenho dedos rijos e hábeis
Pés que andam
E uma certeza que me basta

São os anos em que a distância aproxima

Sinto o cansaço no ranger das falanges
Minhas veias entopem
Minhas unhas se alquebram
A cabeça lateja

São os anos do açoite, do sal espumando a ferida

Mas ainda pressinto um mundo alvissareiro
As flores me inebriam
Os cheiros me entorpecem
Constelações me abraçam

São os anos de meus cílios e nariz no purgatório

O meu peso debruça-se sobre minhas vértebras
A minha descrença malsã amarga meu palato
Minha desconfiança com toda a gente bifurca minha língua
Meu cinismo deita-se em meu colo

São os anos do tropeço, do manquejar, da turbidez da obviedade, meu amor

Mas ainda percebo a minha sorte
Em minha península és musa e flutuas
Caminhas como gente
Levanta-te mulher

São os anos que me pedem agora o esboço de um sorriso
















quarta-feira, fevereiro 2

A Vida útil, apesar do tempo – Cartas II - Alianças



A intersecção da berinjela e da Tailândia,
Da melancia, dos feromônios,
Dos cães, de Kundera,
Dos animais na praia, do tomate seco,
Do suco de morango e laranja liquidificados juntos com Nabokov.

Como se faz (?), eu até sei, mas não conto.

A liquefação do salmão e do basset,
Da água de coco, do boxer, do pincher esquentadinho com a saudade;
Dos cabelos curtos, do beijo que não sai da boca com as flores sobre a mesa;
Dos ataques de sinceridade, das sardas, da ausência, da leveza insustentável,
Da mitologia, das abelhas, do atraso, da cadeira quebrada com o amor que não desprende.

Como se faz (?), eu até sei, mas não conto.

O laço da fechadura e da chave,
Da cana de açúcar, do telefonema longo, do cheiro de fumo com a lágrima na escada;
Da letra da música, do parágrafo estancado, do pedido de ajuda, do iogurte sem gosto,
Da Granola, do jiló, do gosto trocado nas línguas, do sorriso de dentes,
Do estrogonofe de soja, do chocolate amargo, do Neruda com o passado que não passa.

Como se faz (?), eu até sei, mas não conto.

A aliança do frio e da jaqueta emprestada,
Da girafa, da neblina sobre o lago com botas de couro bom;
Da geada, da hortência, da faca com o nome incrustado, do atraso para o almoço,
Da irmã amorosa, da sanga de água turva, do velho de chapéu com pedras enormes que retêm o calor.

Como se faz (?), eu até sei, mas não conto.

A primazia do pastel e da sopa,
De cobertores, penas, calor e pernas;
De quatro pés esfregando-se;
De dois corpos abraçados em descanso.

Como se dá (?), eu até sei, e talvez um dia, se ela deixar, eu conto.

sábado, janeiro 29

Felicidade


Eu sei sobre muitas coisas.
Que Baudelaire foi um comedor de ópio, por exemplo.
Que Neruda amava o Chile, que Henry adorava June, e que o meu vizinho é um Bambi
Sei também que basta a um homem viver um só dia para que ele tenha memórias para o resto da vida. Foi Camus quem disse isso enquanto empurrava um cara pelas ruas de Argel.
E sei ainda, que ao encarar Tolstói, nos fodemos de vez – É que os homens são incapazes de vislumbrar as manhãs de primavera, “para eles só é importante e sagrado aquilo que inventam para instrumento de mútuo engano e tortura.”
E para ferrar com tudo eu sei que nos meus bolsos ando carregando coisas demais, e entre elas, a certeza de que o que eu sei não vai mudar a vida de ninguém, muito menos a minha. E o que eu digo, não tem a menor importância, mesmo.
Acho melhor então esvazia-los, talvez todos nós devêssemos.
No que me diz respeito, tornar-me-ei um idiota.
Os idiotas não sabem que são idiotas. Conheço uma penca, e eles são quase todos felizes.
Talvez fosse melhor para nós assim.
Faríamos um cursinho para aprendermos as sendas de um suicídio bem planejado; pediríamos ao ébrio para tornar-se o mestre; imploraríamos ao ignoto que elevasse além das colinas a sua gagueira de períodos prontos e premissas inseridas por lobotomia.
Viveríamos sob a égide da estupidez, mas também do seu bom senso. Sim, e o que é que tem? Minimamente seríamos menos tristes e dormiríamos mais e melhor, apesar da saliva azeda e da fedentina na fronha.

É claro que existem outras soluções para vivermos mais seguros, resolutos de nossa significância, importância e grandeza. Mas nenhuma garante a leveza da idiotice, além de serem complicadas. E como bem sabemos, costumamos desistir quando as coisas começam a complicar-se, só não admitimos. Preferimos acreditar que os caminhos do subterfúgio são traduções de nossa sapiência.
Mas vejam bem, chegar ao nirvana da idiotice, para alguns, pode não ser coisa tão fácil. Tornar-se um bobalhão exige ponderação, opções, astúcia, conclusões, e um sistema em constante evolução que iniba ponderações, opções, astúcia e conclusões.
É imperativo também que se varra a memória – um grilo falante - para uma vala tão funda onde nem os porcos sintam-se a vontade para chafurdar.
Sem memória, sem o cheiro de nossas fezes, tudo fica mais fácil.

Difícil?
Ora, pois, não desanimem tão rápido, tenho cá a solução: bolinhas.
As bolinhas nos alijam da tristeza, da dor, da responsabilidade. E quem não chora de verdade, quem não fornica com o doído e não se lambuza com a própria merda, dificilmente pensa. E não pensar é condição primeira para quem quer tornar-se um idiota.

É claro que existem contra-indicações, e elas são óbvias: a quem não chora não é dada as variações da luz do dia, portanto da percepção, ainda que fugas, do belo.
Como todo bom abobado não sofreremos. No entanto nunca, por nem um clarão sequer, nos será dada à certeza, ainda que ligeira, de comunhão com o mundo de verdade, da beleza, do que vale a pena, por fim.
Mas se chegarmos ao nosso intento não saberemos disso, não é mesmo?

É... Bolinhas são legais. Com elas poderemos fingir, fingir, fingir...

Mas olhe, lá....É preciso tomá-las todo dia, e com o passar do tempo, sempre em doses maiores. Do contrário a abstinência nos jogará em um limbo perigoso. Um choque de realidade poderia ser fatal. Ele pode esquentar a tal ponto a gelatina que terá se tornado o nosso cérebro, que ela esvair-se-á pelos ouvidos até que os nossos crânios enrugarem como uma ameixa seca.
Mas nós também não nos daremos conta disso, não é mesmo?

Mas e tu, continuas aí a ler. Deus meu...Eu já disse que o que eu sei e digo não têm a menor importância. Não desperdiça o teu tempo aí pensando. Deixa de ser besta. Esvazia a tua cabeça e teus bolsos.
Engula uma bolinha.

sexta-feira, janeiro 28

Crueldade



Cruel foi Pizarro e depois Custer, espalhando cobertores de bolhas e febre.
Cruel foi Madre Tereza ao prolongar a vida desgraçada do desgraçado.
Cruel foi Gandhi ao incitar muçulmanos e hindus
A marchar em direção as linhas de perucas brancas e coletes vermelhos..
Cruel foi a minha mãe ao usar mertiolato em detrimento
Do mercúrio para desinfetar e cicatrizar minhas feridas.
Cruel é quem impõe a canga ainda que para
Carregar o trigo até a criança que vai espichando sob as telhas da casa.
Cruel é quem borrifa o inseticida nas folhas da joaninha,
Nos troncos da cigarra, nas trilhas da saúva.
Cruel é quem desaloja a pupa do roda forro para ela não atrapalhar
A simetria das linhas da sala de estar negando a vida a borboleta.
Cruel são as opções –
O acerto e o erro.
Cruel é a covardia do medo da escolha.
Cruel é não ter como saber se a escolha do agora será pujança ou desgraça amanhã.
É não poder retornar ao ontem para redirecionar o logo depois e o mais adiante.
Cruel é nascer sob a condição de morrer.
É estar vivo sob as ladainhas de como se deve viver para bater as botas e reviver.
Cruel é ter que andar descalço no asfalto,
Ler a placa de “Não pise na grama”,
Ser educado por apostilas.
Cruel é furar as orelhas da guria que nasceu e logo depois afoga-la por batismo.
Cruel é estar exposto aos carrapatos, aos mosquitos, as mutucas,
Ao parasita lambedor de sangue -
A toda a gente que chupa o teu sangue e te rouba a alma.
Cruel é o enganador, o medroso, o mentiroso.
Cruel é fazer o outro sofrer.
Cruel foi ter feito o outro sofrer.
Cruel foi ter dado as costas a um grande amor.

quarta-feira, janeiro 5

Mãe, Irmãos, e uma desgarrada pelo mundo

Irmãos, mãe, meu pai morto, como eu andei distante. Tão distante que desconfio ter nascido longe ou descrente de deus.


Mas vou dar mais uma chance para o carinha.

- Se tu estás além dos platôs do universo, se tu és o átomo, a matéria bruta, o bafejo do pensamento, a mudez do verbo - se tu me és, agora te mostre. Se a minha vida boceja moribunda pouco importa. Já vivi meus sorrisos, já enterrei minhas tristezas. Distribuí o suficiente da água e do fogo. Minhas boas intenções e patifarias não sujeito a ti - as guardarei para mim. O que quero é que te reveles não me estendendo a mão, mas sim encouraçando a quem para ti murmura ladainhas e pulsa por vida.

Se estás por aí num lapso do tempo, numa folha, em um peido atravessado, em uma cólica impúbere, então leve minha mãe além do século. Continue a fazê-la a acreditar que lhe é possível subir em telhados, podar espinheiros, remexer na bolsa procurando moedas e as chaves do carro em frente do flanelinha, impunemente. Se não botares o dedo nisso, então não existes.

Irmãos, o que nos é importante? Nossas crianças que carregam o nosso nome? A esposa, o esposo? A pouca umidade relativa do ar, o pessegueiro que exige sacos protetores para seus frutos? Dentes brancos e couro sem marca de carrapato? Arre... como se há saber.

Ando volta e meia bebendo águas em vossas orelhas.
O cobre é importante, como sei. Fundamental, eu diria, é a prata. Mas o metal não passa de merda diante de vocês. E aí está o dilema. Dá para imaginar isso encilhado em um silogismo? Que bruta confusão!

Irmãos, quando comecei a rabiscar plagiando o “Corcel Negro”, sabia que me irmanava à disritmia. Sabia que o meu compasso não marcaria passo algum. Sabia que seria o prospecto de um eterno rascunho. Não tenho esquadro e réguas como vocês. Mal sei diferenciar um quadrado de um retângulo. Confundo as figuras, não me apercebo das medidas, escorrego pelos círculos. Mas sei que as coisas podem ter muitos lados: lados tortos, lados retos, ou lado algum. Não tenho terços, quartos, meias metades, não fraciono as coisas assim. Não que não gostaria de... é que simplesmente não consigo. Talvez tenha sido o cogumelo que comi no quartel, talvez nossa mãe, sem a má intenção, tenha me parido desse jeito. O caso, é que sou o hiato, e também o ditongo que cresce e desce.

Eu sou o balanço, a gangorra, o Trem Fantasma, o Mexicano, o Carro Choque, o algodão doce no parque Tupi. Eu sou a tatuíra, o girino, o funcho na boca do Campari. Sou o gavião, o pato afogado, a seiva do nó de pinho, a vassoura no camundongo.
Eu sou o susto que a negra nos deu.
Eu sou aquele que se xinga.

E tu Clarinha, vais ganhando o mundo por aí.