terça-feira, fevereiro 24

O matador


Ia um quarto de século que não tirava uma manhã para entregar-me ao fabrico de uma boa funda. Atiradeira, estilingue, bodoque, para quem não é do sul. Outro dia já havia tentado fazer uma pandorga. Tarefa hercúlea, tendo em vista que nunca fui bom em lidar com coisas que rasgam ou se partem facilmente. Sou meio abrupto nos manejos. Para mim material bom é aquele que aguenta minha parca paciência e a falta absoluta de jeito. Acreditem ou não, na quinta série rodei em Educação Artística.
Atirei-me a empreitada por um sobrinho meu, de seus sete anos, que chegou por aqui falando em estilingue, pedra, borracha, grito de gato. Não sei de onde saiu a cisma, já que esse negócio de manufaturar a própria distração caiu em desuso faz tempo, mas confesso que fiz bastante gosto.
Depois de uma noite de falação: “vou ganhar, minha mãe vai comprar”, parapapá e tititi, tirei o guri cedo da cama e fomos atrás de uma boa goiabeira. Sim, porque funda boa se faz de goiabeira. De resto, é só para passar raiva. Achadas duas, três árvores e examinadas as potencialidades das forquilhas, deitamos o facão num braço da pobre e arrastamos a galhada até em casa.
Mal havíamos limpado os galhos finos e serrado as bifurcações escolhidas, o piá já batia pé em inquietação.
- Oh, Tio Marco, demora isso aí? Não tem uma loja por aqui, não?
Só amansou a impaciência quando lhe dei o canivete. A cada pedaço de casca tirada o guri soltava um impropério de regozijo. Quando viu a madeira branqueando aos poucos vibrou e se pôs a raspar as últimas fibras. Com um monte de ferramenta pelo chão, largou o canivete e tentou continuar o trabalho com um serrote. Não deu certo, e lá foi o dentado pelos ares. A serrinha, quem sabe? Que nada. Ele já ia pronto para encher a funda de porrada contra a cesta de basquete quando se deu conta:
- Oh, Tio Marco (?), devolve o canivete.
Prontas as forquilhas das três atiradeiras – uma grandalhona, outra mediana, e mais uma nanica que cabe escondida no estojo e dá para levar para o colégio - deixamos o sol trabalhar de maneira a dar conta da umidade. De dois em dois minutos ia ele lá fuçar.
- Agora tá ficando seco. E ia de novo.
- A madeira tá ficando dura. E mais uma vez.
- Agora não quebra mais. Ficou branquinha.
Levei então o danado até a garagem para canibalizar uma bicicleta velha. Rapidinho, rapidinho, e a câmara do pneu já era força de empuxo. Depois rumamos ao quarto para bagunçar alguns armários a cata de uma calça de couro velha ou qualquer outra coisa útil ao propósito. Achamos um cinto e em meia dúzia de picotes estavam prontos os descansos da munição.
Foi só nessa hora que zuniu a aura da prudência em meus ouvidos. Embora tardiamente, desdobrei-me na catequização.
- Olha, Lipe... A funda é uma arma rústica. Uma arma... Entendeu? Os homens caçavam com isso. Imaginou? Dá para derrubar um veado com ela. Até hoje algumas tribos isoladas mundo afora utilizam a atiradeira nas caçadas.
E o guri? Ora, cagando pro meu blablabá, tirintotón. Minha herpes de estimação formigou dentro do lábio:
- Lipe, o estilingue pode ser perigoso. Se uma pedra pegar na testa de alguém até matar pode.
- Eu não vou usar pedra, não. Só bolinha de gude. Tenho um monte assim num saco lá em casa.
- Pior ainda, zebuzão”.
- Mas foi você quem falou que bolita era bom.
- Se falei tá desfalado. Não pode, é perigoso. Projétil bom mesmo de bodoque é aquela britinha, pequena e leve. E a gente só atira em sítio, chácara, pátio grande, e pronto.

Durante os dias que ficou por estas bandas a vida dos insetos foi um inferno. Como se não bastassem os passarinhos, as lagartixas e mais uma penca de predadores, tinha o Lipe. Se um cascudo, aranha, gafanhoto, dormisse no ponto, estava lá ele e a inseparável. E para complicar ainda mais a vida da bicharada, não era simplesmente evitar cruzar o caminho do piá. A irmã e a prima, donzelas em desespero a cada pobre coitado ao longe passando, aos gritinhos clamavam pelo matador.
- Vou buscar minha funda, anunciava o carrasco para o alívio das moçoilas.
Normalmente ele acabava resolvendo a contenda com o peso do pé. Mas o estilingue estava ali, de salvaguarda, impondo respeito caso uma aranha se mostrasse peluda por demais.
Pois bueno... Depois de vinte anos fui ao mato feito guri avoado buscar um bom pau de funda. Fiz mira e encolhi os ombros quando a pedra ricocheteou no alvo pra mais de dez metros e chegou perigosamente perto da varanda.
Agora, o matador volta para casa. Ele e as fundas. Aos pais recomendo atenção. Principalmente com a nanica. Afinal, ela cabe no estojo do colégio.

sábado, fevereiro 21

Ciclo




Matem-me, por obséquio, nem o lixo recolho mais.
É o tempo das mulas sem cabeça dando-se por chegado.
O tempo dos caiporas, sem fumo, sem piteira.
O ensejo dos Curupiras em dentes verdes falecidos na mata.
Dias de Guaçu-boi - Boitatá caolho nas campinas secas.
Sucessão das horas do preto, sem mágica, sem fantástico.
É o tempo exilado nos ciprestes, sem Teiniaguá, cerro, Salamanca e Jarau.

Passo em passo, passa a canoinha e seu Caronte pelo Riozinho.
Passa a bruxa sem arquétipo, sem vassoura, sem chapéu pontudo ou tamancas.
É tempo dos ventos tristes - Bóreas em carrancas.

Matem-me, no obséquio, nem o lixo recolho mais.
É o tempo da hidrocefalia.
O tempo do rosto monstro, sem sombrancelhas, sem bochechas e nariz.
Hora e vez do beiço leporino, da boca retalhada, da baba seca na marca da sutura mal feita.
Época de cabeças orelhudas e dentadas postiças.
Ocasião do olhar sem têmpera, orfão do viço.
É o tempo exilado na pele seca - rugas em sulcos.

Passo em passo, passa a canoinha e seu moedeiro pelo Riozinho.
Passa o Jorge sem manto, sem espada, sem cavalgadura e dragão.
É tempo de Quimera - ausências de herois.

Matem-me, por obséquio, nem o lixo recolho mais.
É o tempo dos pastores sem cajado.
O tempo do ovelheiro sem lã, sem toldo, sem sineta e sandálias.
Noites das matilhas, da saliva medonha, do rosnar.
Ciclo das feras, dos grunhidos, do range-range que não cessa.
Anos da peste, do pus, de caninos ensanguentados.
É o tempo das buchadas abertas - tripas esturricadas ao sol.

Passo em passo, não tenho óbolo, sequer língua, para atravessar.
Passo em passo, adentro o irremediável.
É tempo de insanidade, sucessão dos versos sem clave, sem dó, sem sol.

quarta-feira, fevereiro 11

Expedição


Aventura, esporte radical? Esqueçam asadelta, montanhismo, paraquedismo, rafting, tiro ao alvo em mendigo, expedições à África Central. Se quiseres tu adrenalina, faça um filho. É fácil. Basta só colocar aquele negócio dentro daquele outro negócio e esperar nove meses... com o cu na mão.
Exemplo bobo para justificar o ânus no andaime? Cinco ou seis dedos?
Quer complicar? Repasse os últimos quinze anos da vida que levaste. Alô, show de horrores. Bom dia, trem fantasma.
Isso sim é radical. Ficar matutando sobre o grau de imundície e contaminação da tua semente e ficar torcendo para quem venha adentrando o mundo não herde o fardo de uma vida ligeira.

A porrada do susto passa quando a gestação já vai entrando no terceiro mês. A essa altura já abandonaste o discurso ateísta e te transformaste num agnóstico amedrontado.
Quando chegar o quinto mês e tu olhares a barriga da prenda com um caroço movediço andando de um lado pro outro, e fores chutado no meio da noite por um alien escondido na barriga da tua mulher, tchauzinho big-bang, darwinismos e descrença esnobe. Tu entregas a deus e mente que o passado te faz hoje uma pessoa melhorzinha. E vê se aproveita o ensejo e pede para tua companheira voltar à velha forma.
Não que mulher grávida não seja bonita, coisa e tal. Basta relevar os inchaços, o nariz indecente, e fazer de conta que nem reparou na pata aqui, pata acolá.

Mas não te desespere, afinal tu já acreditas e a tua fêmea ainda está lá. Não se sabe bem onde, mas está. É só fazeres um esforço que tu enxergas. Se não, acalma-te. Depois do parto o nariz volta ao normal e a leveza do andar se refaz.

Mas nem te vai alegrando e podes ir recolhendo os assanhamentos. Aquele corpo e o tempo já não te pertencem. É tudo-tudo para a cria.
Mas daí tu olhas a pequena rindo com os olhos, e não terás tido na vida gozo maior. A vampirinha sanguessuga, que te cansa e te grita em qualquer hora e geralmente em todas elas, é tua costela, rins e unhas. É com teu braço que acalma e descansa.

Então tu te pegas capaz de todo absurdo. Plantas aipim numa nesga de pátio. Cavas um buraco até bem no fundo para dele brotar um poço - enfias um projétil na testa de qualquer alguém. Invocas a ti a ardência, a dor, a angústia, a existência trêmula. A ti chamas o constrangimento, a penúria, o medo, a dívida, o finar, se isso poupar os olhos do rebento do vislumbre de uma só mancha, de uma sombreadinha só de mácula.

E aí, irmão, a vida tua pode acabar-se como uma figueira velha tombando em final de tarde à beira de uma lagoa, porque em tuas raízes farão casa os lambaris. Como pontinhos prateados de luz ao entardecer eles chacoalharão as águas. Chafurdarão a madeira que apodrece fazendo do leito um caldo escuro, próspero, vigoroso. E o teu tempo, ainda depois do teu último galho tordo já afogado, desaparecido no juncal, será o teu tempo.
Sempre.

terça-feira, fevereiro 10

Vende-se

O Blog do Rost a partir de março abrirá espaço para comerciais, anúncios, propagandas, reclames. Por natureza, perfil, gosto, e afinidade do autor, os parceiros anunciantes da página oferecerão o esdrúxulo, o improvável, a anomalia, a sacanagem. Enfim, tudo que, legalmente e tributado, qualquer vivente encontra a meia dúzia de passos de casa: pílulas abortivas, bolinhas moderadoras de apetite, confetes anti-depressivos, santos de gesso mal pintados, rosários de polipropileno e náilon, paus de borracha, xoxotas de silicone. E tudo mais, é claro, que modere o estresse e espante cara feia.
Quisera eu flutuar no incólume, no imaculado, a margem de pressões comerciais. Mas nos dias de hoje, esqueçam.
Aos leitores acalmo garantindo que o departamento comercial estará atento à ética, moral e bons hábitos. No entanto, como o blog é lido mundo afora, das Américas a Eurásia, da Indochina a ponte de Bering, ele não fará restrição a costumes, desejos, necessidades e preferências. Ou seja, se pagar imposto e a vigilância sanitária bancar, tá liberado. Compra quem quer, repudia quem tem juízo, medo, restrições, frescura.
C'est la vie.

sexta-feira, fevereiro 6

Obrigado por fumar


“Obrigado por fumar” é um bom filme. O enredo, embora seja ficcional, explicita números, estatísticas e estratégias da indústria do fumo nos Estados Unidos. O final é chato. Estoura numa catarse moral desnecessária. Ttratando-se de uma produção americana, nada de estranho.
O intento do preâmbulo acima? Nenhum. Só estou enrolando para começar a escrever sobre o que anda me aporrinhando o saco ultimamente: as infames patrulhinhas do tabaco.
Tá certo, os fumantes abusaram por tempo demasiado. Era pito no elevador, no escritório, no restaurante. Até em festa de final de ano em jardim de infância fumava-se sem perdão e culpa. A gurizada lá, dançando o pau de fita, e os marmanjos pelos cantos fingindo assistir, e é claro, fumando. Cagava-se para as criancinhas. Dava-se um foda-se aos palatos da mesa vizinha. Tripudiava-se da asma e alergia dos colegas de repartição. Afinal, falta de ar na época quem tinha eram as crianças e as mulheres, e olhe lá. Que ofegassem com parcimônia. Se fosse homem então... Para coçar as narinas e espirrar as sensibilidades o sujeito tinha que ter paleta, já que lhe recairia no ato o peso da suspeita sobre suas preferências e necessidades. Incomodação em demasia com a fumaça, só tinha o vivente de pouca convicção que na hora de engatar a marcha troca a primeira pela ré.
Era abuso por demais, bem verdade que isso lá era. Flertava-se com a maldade. Enfumaçar sem um mínimo de constrangimento o ar de crianças que sequer firmavam o pescoço, ou por em dúvida a masculinidade de um sujeito por conta de um par de narinas inflamadas era no mínimo sacanagem. A tanto descaso havia mesmo urgência de bridão e freio. Contudo, no entanto, todavia, nesses tempos do agora, do politicamente correto - expressão essa que convenhamos, beira a gozação – em que o iogurte, o brócolis, os chazinhos, corridinhas e panturrilhas firmes ascenderam a pedestais sacrossantos, a perseguição aos fumantes começa a cheirar mal.
É patrulha demais. Não fume ali, também não acolá. Dentro é proibido, e lá fora não pode não, pois a lei se espicha até pra lá do terraço. Se a coisa continuar na passada que vai é bem capaz de termos de enfrentar milícias pelos cantos e esquinas arrancando filtros aos tapas. E daí quero só ver. Contra-revoluções costumam ser sangrentas. Liberté, Egalité. Já a Fraternité, esqueçam e engulam as queixas. Robespierre, se bem me lembro, meteu na guilhotina até a constituição. Deu no que deu. Saiu o rei sol broxão e entrou o perfumoso peruquento cortador de cabeças. Derrubaram a Bastilha, cortaram as gargantas, vizinho dedurou vizinho só pra comer um a mulher do outro, e acabou que os franceses tiveram que aguentar o nanico chapeludo e o retorno do absolutismo.

No caso da iminente convulsão dos fumega contra os não fumega, banco dez por um como ressurgirão das cinzas o Minister, o Continental, e de quebra, entre as castas de pé no chão, o Belmonte, ovacionado e em glória. Isso porque aos fumega, se falta à convicção de nobreza de causa, sobra fissura - muita fissura, além da necessidade intrínseca do homem por Liberté, sem que ninguém lhe encha o sagrado e enrugado saco.
E aos não fumega o que resta? Pouco, quase nada. As fileiras são frágeis; os soldados, dispersos. Faltam-lhes marcos de unidade como o vício e o desejo em dor física e psicológica, coisas que o inimigo tem de balde. De qualquer forma, o caos busca equilíbrio, e um dia os opostos se estabilizam. Depois do sangue, da decapitação de filtros e cabeças, os fumega serão mais respeitosos nos espaços e delicadezas, e os não fumega, mais tolerantes nos cafés, bares e porões.