segunda-feira, novembro 24

Chuvas


Chove há cinqüenta e três dias. E não é garoa não, é água desabando sobre o mundo. Entre sexta e domingo só faltou chover rã. Os mais crentes reuniram-se em mutirão e trabalharam incansáveis em um transmissor de ondas curtas para contatar São Pedro. E outros, mais crentes e apocalípticos, colocaram as mulheres na reza e foram para o mato cortar madeira de modo a construir uma arca.
Entende-se o desespero. O normal seria cair cerca de cento e trinta milímetros de chuva em trinta dias. Despencou duzentos e dez em dois. Isso sem falar do que já se precipitou nos últimos dois meses. Quem for bom com os números que se arrisque nos cálculos. Só não nos conte o resultado para não causar histeria.
Ninguém mais sabe pra onde correr. Se ficar ela molha, se correr encharca. Estamos no final de novembro e fiquei três dias com a lareira acessa. Em novembro brasa na sala de estar, dá para acreditar? Não é pelo frio, mas para secar roupa. Com uma guria de sete anos e outra com um mês – que me atocharam que ia nascer no verão e ia poder ficar só de fralda na varanda, a coisa fica difícil. É chuva demais. As ruas estão alagadas e intransitáveis, o pátio enlameado, e tem sapato que não acaba mais na área de serviço. Mas pena mesmo tenho da vizinha que mora num quarto com cozinha e goteiras. O cara do telhado esteve ali, subiu, deu de muito esperto, e quando foi embora além de cobrar pelo serviço deixou mais meia dúzia de telhas quebradas.
Mas quem dera os problemas de boa parte dos catarinenses se resumissem a roupas, sapatos nas soleiras e goteiras. Já passa de cinqüenta mil o número de desalojados e de sessenta e cinco o de mortos. Mais de trinta pessoas estão desaparecidas. Morros inteiros estão se deslocando sobre as estradas. Três das principais rodovias do estado estão bloqueadas, incluído a 101. Fora as artérias de menor porte que fazem a ligação entre as cidades. Sete municípios estão completamente isolados com a queda de pontes e barreiras. Ninguém sai, ninguém entra, ao menos enquanto não chegam os helicópteros. Os rios estão invadindo não só o que foram um dia suas áreas de alagamento, ocupadas com o crescimento da região. Estão indo além, varrendo tudo em frente. O Itajaí-Açu, velho conhecido pelos estragos que já causou no passado, principalmente a Blumenau em 1983, voltou a rugir. Casas, prédios, ruas, bairros inteiros estão sob suas águas barrentas. Mães choram filhos soterrados. Pais olham para as águas com os lábios secos.
Milhares de pessoas estão sem água potável, luz, gás, morada. Centenas de escolas e creches estão fechadas. Hospitais transferem enfermos em vez de recebê-los. Correm também o risco de serem engolidos por avalanches de lama. Lojas, fábricas, serviços – o que não está parado funciona precariamente.
E o pior é que pode piorar. Até quarta, embora em menor escala, o aguaceiro persiste impedindo os trabalhos de liberação das estradas e o início da reconstrução de dias melhores.

Foto: Glaicon Covre/Diário Catarinense/Ag

sábado, novembro 15

Engrenagem


Varre, lava, estende.
Limpa, bate, varre, lava, estende.
Limpa o quarto, limpa a sala, limpa a cozinha, limpa o banheiro.
Limpa a varanda, limpa a garagem, limpa a terra, limpa o céu - limpa.


Sabão, sapólio, detergente, desinfetante, amaciante, lustra móveis, cloro, corrosivos.
Limpa, limpa tudo.

Pano para o chão, pano para o pó, pano para a louça, pano para a pia, pano para o tanque. Pano de limpar patente. Pano para a casa, e um pano para fora de casa.
Varre o chão, varre o pátio. Varre o canto escondido pelos livros jogados.
Lava a área, lava a roupa, pendura a meia encardida pelo calo.
Lava, estende, sacode, lava.

Arrebenta, arrebenta.
Arrebenta o chuveiro. Arrebenta a torneira.
Estoura o cano, o registro, o portão, as treliças da porta de serviço.
Estoura a fossa, estoura o ralo, o sifão, a bancada da pia do lavabo.

Estilhaça o vidro, estilhaça o prato, estilhaça a xícara, estilhaça o copo.
Quebra o vaso, a janela, a floreira.
Quebra a telha, quebra a calha, quebra a caixa.
Estilhaça, fraciona – alquebra.

Parte-se, parte-se.
A cerca, a mangueira, o registro, a torneira.
Fura o pé, fura a mão, o pneu, o tonel, a borracha das tiras dos chinelos.
Fura o saco preto preto do lixo.

Vasa, escapa, infiltra, cede, cai – desencaixa.
O vitral, a maçaneta, o trinco, a tampa, a rosca, o forro, o piso.

Lasca, desfia, desbota, descasca, descostura, desencapa.
Amarrota, enferruja, mofa.
Fadiga.

Prende, bate, atarraxa.
Atarraxa o parafuso, o gancho, o pino.
Atarraxa o pino do suporte do pé da banheira.

Martela o prego, a taxinha, o percevejo, a joaninha.
Prende a prateleira, o roda-pé, a ventarola.
Prende a saboneteira, o toalheiro, a lixeira.
Prende a alça do fio do mosqueteiro na cabeça do prego na madeira.

Pendura a máscara, a cerâmica, a foto, o móbile, o espelho, a bandeira.
Pendura o gato, o bêbado, o tropeiro, a caricatura, a santa, o cubano.
A pirogravura do cavalo no couro de borrego.
Pendura o quadro das mulheres nuas no mezanino da sala longe do fogo da lareira.

Distribui, reorganiza, espalha.
Espalha as velas de cera verde e rosa por cima dos balcões e jardineiras.
Põe em seu lugar a moça, o pé grande, o lampião, a galinha, o cafetão, a prostituta –
a garrafa de pisco e a cuia para erva de paus de sorver tardinheira.

Descansa.
Descansa a renda alvejada, quarada, esbranquiçada.
Descansa os dedos, as unhas, a pele ressecada.

domingo, novembro 2

Finados


Esse negócio de bater as botas, a caçoleta... Esticar as canelas, o molambo. Dar a lonca, passar desta para melhor, finar, morrer – a coisa toda da morte, daquela morte morrida, conheci pequeno. Em uma manhã de páscoa garoada o Bongo não levantou do gramado. Era um animal pra lá de bom. Acompanhava-me onde fosse. Brincava com quem devia, vigiava a retaguarda das esquinas, e mostrava os dentes aos malevos na intenção. Ouvi pela janela meus pais dando um rumo pro corpo. Pouco depois, quando saí pela porta, o pátio tinha perdido a cor. Anos depois vi morrer meu pato por descolamento da nuca. O malhadinho revirava a cabeça, retorcia o corpo tentando assentar a cachola no pescoço. Não conseguiu. Homicídio culposo. O assassino? Meu próprio irmão. O guri tentou ensinar o patinho a mergulhar no tanque cheio de sabão em pó com técnica duvidosa. Morreu em meus braços. O pai mandou o piá dar o dele para mim. Não quis. Algumas coisas não são substituíveis. O criminoso pegou vinte e quatro horas no quarto - saiu sob condicional de não chegar a menos de dez metros dos outros animais por um mês.
Tempos depois, já com uma certa intimidade com a foice da noite, resolvi praticar um pouco. Brincar de poder sobre a vida e a morte. Comecei matando camundongos a vassouradas e tiros de chumbinho. Mais refinado e flertando com o sadismo, repensei os métodos e passei a caçar ratazanas. Prendia os medonhos em uma gaiola, botava no tanque, abria a torneira. O desespero era tamanho. Os olhos esbugalhavam, das gargantas vinham silvos, das fuças brotava espuma. Os bichos mordiam o arame da gaiola e atiravam-se para riba de maneiras a escapar do martírio. Chegava a dar medo das feras desencarnadas e do cheiro de morte na lavanderia. Fiquei meio abochornado com o suplício dos nojentos e parei com aquilo. Vá lá que eram ratos, mas até para dar fim a essas pestes há que se ter limite.
Mas foi quando resolvi abrir meu primeiro mal fadado negócio criando codornas, é que me tornei homem de chacina.. Disseram-me que as pardinhas eram boas de sacanagem, e com matrizes de estirpe, num instante teria centenas delas. Só esqueceram de avisar para os machos. Os meus eram uns baita frouxos. Olhavam para as fêmeas e nada. Já as meninas, por assim dizer, para expulsar um mísero ovinho era uma trabalheira.
Depois de um mês masturbando “codorno” para que os testículos não empedrassem, e chuleando ovo, dei o ultimato: sem foda e cloacas produzindo, o panelão de ferro ia baixar do sótão. Promessa feita e preguiça entabulada dei de mão no Dona Benta, preguei dois cravos num toco sólido, e deitei fio no facão de poda. Na ausência das práticas, num golpe errado decepei metade do rosto da primeira desaventurada. Num vôo macabro a bicha foi estourar no peito de minha mãe que vinha pela porta. As companheiras amontoadas numa gaiola eram pura inquietude. Precisei de cinco horas de fogo brando para amaciar a carne das danadas.
Depois disso ainda vi esmarrir meu coelho de olhos vermelhos, o Campari. Morreu na boca do Ciborg, cachorrão brabo, guarda da casa. Estive também na definhação do Haroldo e da Giselda, marrecas que criava. E de mais um monte de pintos, passarinhos gatos e de pequenos quelônios fazendo às vezes de chicle nas mandíbulas da guaipecada. Ovelhas, leitões, bezerros e algumas caças, ajudei a dependurar em galho alto – todos carneados em virtude da boa mesa.
Mas nesse negócio todo, nada me intrigava mais que os garnisés dos despachos nas encruzilhadas. Admirava os galináceos estrebuchados cheio de respeito aos rituais dos sacrifícios. Como não sou de ferro saboreava uma balinha de mel da oferenda enquanto analisava a carcaça e amassava inquieto o celofane vermelho. Enfim, sempre achei a morte algo natural, inerente à vida. Se ela for com propósito, método e fé, melhor ainda. Chocado acho que só fiquei uma vez quando vi uma camiliana sem hábito ensacar uma ninhada de gatos para depois ficar arremessando a carga violentamente contra uma árvore repetidamente.

De gente morrida não gosto de falar, basta dizer que já esticaram os pelegos no descanso todos os meus avós. Sinto mais falta de um do que outro, conforme o dia e a situação. E que já vi por força de ofício cadáveres esmagados no asfalto, esburacados por bala ou faca em bancadas de necrotérios. Sem falar nas crianças mortas por infestação de bicho de pé.
De gente mesmo só posso escrever de mim por mais eu. É que da adolescência em diante passei a morrer também. Um pouco a cada dia. Um tantinho por cada amor perdido, por cada saudade suspensa no tempo. Ademais, em um por um dos meus rasgões as feridas latejam, e nem cromo ou mertiolato, nem sutura ou hipoglós, reza braba, simpatia ou macumba, são capazes de fechá-las. E isso nem quero. Se caminho para morte, que seja então com meus cancros. Lá no fim, até do pus deve verter algo de bom.