sexta-feira, maio 27

Catharina


Conheci uma guria...

É bem bacana ela.
É bem bonita, assim falando mesmo de verdade.
Mas a gente anda só, do jeito dela lá ela, e cá eu do meu jeito,
Permitindo por frestas algumas quantas espiadelas.
Querendo saber um poquito más um sobre o outro,
Anunciando-nos em gotas, um e outro em suas falas.

É saliente esta guria.
É bem luzidia ela, e senhora do seu bom cheiro.
Daquele cheiro que dispensa perfumes em frascos,
Daquele cheiro que ninguém imita,
Que suscita imaginação, faro e palato.

É bem bacana ela.
É bem bonita, assim falando mesmo de verdade.
Mas a gente anda só, do jeito dela lá ela, e cá eu do meu jeito,
Equilibrando nas linhas das palmas das mãos improváveis bússolas.
Querendo saber um poquito más um sobre o outro,
Revelando-nos devagar, um e outro em suas arcas.

É ereta esta guria.
É bem alinhavada ela, e dona de seu brilho.
Daquele brilho que dispensa abajur e lâmpada,
Daquele brilho que só se propaga se for por ela,
Que suscita agulhas, carretéis, pequenas sombras em novelos.

É bem bacana ela.
É bem bonita, assim falando mesmo de verdade.
Mas a gente anda só, do jeito dela lá ela, e cá eu do meu jeito,
Atiçando os pontos alaranjados no carvão ainda quase todo preto.
Querendo saber um poquito más um sobre o outro,
Assoprando-nos com cuidado, um e outro em seus hálitos.

É clara esta guria.
É bem acastanhada ela, e segura de sua cor.
Daquela cor que pinta os olhos,
Daquela cor que borra e expande a aura,
Que suscita a mistura das tintas sobre cavaletes e telas.

É bem bacana ela.
É bem bonita, assim falando mesmo de verdade.
Mas a gente anda só, do jeito dela lá ela, e cá eu do meu jeito,
Cutucando os pés, cotovelos, braços e emendas.
Querendo saber um poquito más um sobre o outro,
Sentindo-nos por rótulas que se raspam ou encaixam, um e outro em seus membros.

É esverdeada esta guria.
É bem torneada ela, e dona de seu contorno.
Daquele contorno que é traço, mas também é mancha,
Daquele contorno que alinha, mas também entorta,
Que suscita o oblíquo, círculos, intersecções e alamedas.

É gateada esta guria.
É bem um sussurro ela no andar das unhas dos dedos dela.
Daquelas unhas que bem quero continuar a vê-las,
Daquelas unhas que bem quero sentir percorrendo a noite,
Que suscita as costas a pequenas fissuras, arranhões meio afobados.

Conheci uma guria...

Esfíncter



Ando numa merda desgraçada. Daquela merda que cheira feito cu em cancro.
Carro velho quebradiço, calças surradas, cuecas sem elástico.
Taxas de luz e água sempre atrasadas. Tem mês que quando aponto na esquina já miro de longe a caixa de luz para ver se o pontinho vermelho continua piscando. Se pisca, respiro aliviado, já sei que vou acender as lâmpadas e tomar banho quente.
Do contrário, velas e ducha fria. Tropeços e impropérios.
E vós sabeis, ou não, que quando a bosta chega à tamanha grandeza, a vida torna-se uma fossa mal cavada fermentando um caldo grosso que respinga feito um vulcãozinho raso na planície, fumegando pequenas tragédias cotidianas.

Quando a coisa chega a esse ponto tudo vira susto.
Se tilintar o telefone, tu pulas.
Se a cachorrada empreender arranque no quintal, tu pulas.
Se um galho arranhar a janela, tu pulas.
Se um fusca estourar um peido na redução brusca das marchas, tu pulas, mais ainda.
Mesmo que tu não tenhas nascido de susto e que, portanto, tu não sejas por natureza assustado, tu pularás, creias nisso.

Engraçado é que já houve uma época em que eu associava essa condição fecal ao uma espécie de romantismo, esperando dela o útero da musa.
Engraçado, e muitos tapas em minha cara, é que nessa época eu não escrevia nada, ou escrevia um monte de besteiras. Tantas como agora.

É fácil ser romântico quando as coisas não efervescem ou fedem ao sol.
É fácil quando as coisas continuam te permitindo o sono.
Desejar o esterco para que ele seja gatilho de inspiração é uma coisa.
Já ele esmagado por entre o comprimento dos dedos (?), é bem outra.

Às vezes tenho vontade de armas o tabuleiro para o copo, ou dar um pulo num centro espírita. Chamar para um colóquiozinho, Milleres, Bukoviskes, Rimbaudes, Plínios Marcos.
Seria só para ter certeza que muito antes de mim eles já haviam sacado tudo há um tempão, e por isso escreviam.
A merda fede, não digo novidade. É só, que quando ela se esparrama por certas páginas tem o dom de camuflar-se e parecer apetitosa.

Quando o copo, se o copo deslizar, eles mandar-me-iam tomar no cu, estou certo. Arremessariam- o contra a parede, enterrariam os dedos no meu rabo, e me fariam lamber a casca de feijão mal digerida que estava grudada na parede do meu reto.
- Qual merda o quê!?, gritariam
- Não basta sentir o cheiro dela, otário, é preciso comê-la. Enfie no cu os cacos do copo junto com o teu médium, vociferariam.
- Coma o que tu cagas ou cala-te, maquete de pequeno mentecapto. Engula aquilo que evacuas ou te banharás eternamente com o que espirras com a força do teu esfíncter.

É.... Eles diriam...
É que a merda anda tanta.....

terça-feira, maio 3

Páscoa


De assassinos e suicidas todos nós temos um tanto e um pouco – é o preço para quem nasce. Basta escorregarmos vagina abaixo, ou sermos arrancando com hora e dia marcados através do corte no ventre encaixados entre dedos estranhos para começarmos a fenecer, e logo depois, a matar.
A condição é idiossincrática para quem, por algum motivo, vem para o mundo.

A questão não é o assassínio em si, puxar um gatilho e pronto.
Mas sim de que assassinar num repente faz parte de nossa natureza. É telúrico, atávico, instintivo, e, sobretudo, o passo da sobrevivência..
Também não é a de cortar os pulsos ou enfiar um cano gelado na própria garganta e disparar o ferrolho. A agressão contra a própria existência é contraditória, esfola o afã de perpetuação.
Mas sim, é questão, de que gente quando vive, mata e é morta todos os dias, a pequenos bocados.

Nosso primeiro e inexorável impulso de vida, pode bem predar, pode bem liquidar quem entre contrações e fincadas lancinantes se rasga para nos jogar para o chão. Mas a quem chega envolto no sebo da placenta, muito pouco isso importa – não há ponderação ou recuo, só há o impulso. E logo em seguida mais e mais impulsos de experimentação e de lambuzar-se em um mundo que está sempre mais adiante, e de gente que nos mina a saúde e nos arremessa para umidade da cova.

Nada vem de graça, nem mesmo a graça de Deus.
Tão pouco, o equívoco da maternidade.

A pólvora seca e esquenta ao tempo que esticamos, e o nó na corda aperta a cada passo dado.
E não adianta amansar, ou termos boa vontade.
Essa é a língua fosca daqueles que engolem dedos, mãos e braços.
Gente que se apossa de brasões dissimulando, longe do sangue, brincando no tabuleiro.
Essa é a língua daqueles a quem falta bandeira e perdem-se em camalionices


A morte não é a mãe, em uma frase por telefone, matando a filha.
A morte não é mais um homem pelado em frente à filha miúda de um outro.

A morte é teu dia que começa com o café na manhã, passa pela indolência de tua tarde, e descansa na noite de tua cabeça torta, deslumbrada, incapaz de perceber o que não seja fruto e vontade de tua confusão.
A morte é a tua casa, o pátio a quem nuca te permitiu, é a tua varanda vazia de plantas.
A morte é teu pai, a tua mãe, quem te cerca e te esconde.

A morte está em teus dedos, em teu toque mudo, nas tuas calças e sapatos de revistas couché.
Ela cresce nas tuas sombras, nos teus fios de cabelos grossos, aramados, secos pelas tintas.
Ela se enreda por tuas canelas feias, coxas gordas, pentelhos encravados e joanetes.
Ela caminha nos teus olhos plúmbeos e na tua língua grossa de papilas cegas que invade sem sutileza, desprovida de graça, atarantada e ansiosa.
Ela é a gosma dependurada em teus cílios longos de canecalon.

A morte não é a tua copla fraca e sem ritmo.
Não é a poesia que tu és incapaz de sentires ou trançar.
Tão pouco tuas idéias derretidas em coisas que discursas, mas não entendes.
Não é a tua dança esquisita, desengonçada, ou o barulho que fazes ao sorver o leite.

A morte não é tua boca suja sem argumento plausível, ou tuas pílulas.
Não é teus lábios murchos a vomitar ironias ébrias de vinhos.
Vinhos que não produzes e pelos quais, muito menos, pagas a conta.
Ela é o gesto largo, desastrado de afetação.

A morte é a tua escuridão, o teu disfarce. É a tua roupa moderninha.
A morte é teu compasso de ponta incerta incapaz de vislumbrar a emenda do círculo.
A morte é tua vista sem horizonte ricocheteada na amurada de neurônios que não se falam.

De assassinos e suicidas todos nós temos assim, um tanto e muito mais de um pouco.
E na páscoa, ninguém ressuscitou.
Pois então, fodam-se os Lázaros, os Batistas, os Jesuses.
Todos os doutos.

Dois pais mortos.
Valor. Proteção. Punho. Zelo.
Existe uma guria que me acalenta o sono e repousa em meus braços.