sexta-feira, outubro 31

Caminhada


O dia nasceu cambaleando, bêbedo, turvo, um borrão nas retinas. A noite não teve sono ou descanso. Foi de passo em passo, tic-tac de pêndulo, caminhando para manhã. Fiquei de lá pra cá comendo as léguas dos corredores e dos paralelepípedos espelhados pela chuva ranheta, teimosa, lavanderia do mundo. Tive outra noite longa igual, já vai tempo... Nem bem a luz despontou e a passarada se anunciava nos quintais dos arredores. As pedras das bruxas, benzedeiras e parteiras, lá fincadas na maré. Tentei imaginar a soldadesca nos fortes, as naus ancoradas na baía, os candeeiros no casario queimando o óleo das francas mortas na Armação - os renegados sentando vida ao oeste do Atlântico.
Deve ter sido difícil para Nina adentrar pros lados de cá. Escorregar pela senda estreita e por demais apertada para cair na ponta de dedos estranhos. Ser jogada às toalhas, metais, luzes, sons - ao frio de um lugar em que já não cabia. Impossível alcançar suas paredes, reconhecer suas cores, imantar-se na perspectiva de um chão. Sua única e plausível saída foi voltar a encolher-se, colocar a mãozinha mais uma vez junto à cabeça como fez por meses na segurança de seu chateau materno.
Mas encolher-se resolve pouco. Abrir os olhos pode ser um suplício! Mantê-los focados, seguros em suas órbitas requereu, e ainda requer, um esforço hercúleo. É tudo muito grande, não há para onde mirar. Se a bichinha senta foco em alguma coisa, outra logo passa por detrás e lhe rouba a atenção. Quando enfim consegue ajustar a vista, se lá tinha alguma coisa, ali já não mais está. É tudo uma bruta confusão. Se as coisas vão alvoroçadas demais, melhor fechar os olhos e dormir - simples assim. Frente a esse mundo destrambelhado, ao menos por enquanto, cerrar as pálpebras resolve. Oxalá nunca lhe falte a perspicácia.
Pena um piscar não dar jeito em tudo. Para engrenar o estômago e os intestinos, por exemplo, as catracas flertam com a dor. Estavam lá os órgãozinhos novinhos em folha, numa boa, só no amniótico. E agora, sem mais nem menos, por conta de um leitinho, são convocados de supetão ao trabalho. Ora bolas, todo motor precisa ser amaciado, não é no tranco que a coisa funciona. Quereria assim eu, o ignoto. Ora, pois é no solavanco que tudo desce. Espreme pra lá, repuxa pra cá. Contorce, esperneia, geme, chora. Em fincadas lhe afronta a cólica, em inchaço lhe desafia o ar que se nega ao arroto. E remoendo a incomodação, o desconforto já vai alinhando na face as primeiras rugas. E os gritos fincam os alicerces dos calos da garganta. E aos pulsos em tensão, resta no ensejo fortalecer os músculos para quando chegar a hora de cerrá-los com fúria invocando xamãs e conquistas.
Por hora, apesar das duas semanas, a pequerrucha vai mostrando fibra. Já começa a segurar a cabeça sobre o pescoço, e vira o corpo quando bem entende no carrinho. A médica diz que ela deveria estar quieta, ainda molenga. Ah, moleza lá o quê! A guria ganhou o dobro do peso previsto, e daqui a pouco começa a andar, depois a correr e dependurar-se. Árvore pelo bairro é que não falta. Logo, logo, vai ter puxão de rabo, orelha, e tapão sobrando pra cachorrada. Quando as tripas se ajeitarem serão outros ais, muitos outros ais. Que venham. A garota tem bom sangue, canelas fortes, dedos longos, e olhos para o mundo.

sexta-feira, outubro 17

NINA FRECHIANI LEITE ROST


Meus queridos e parcos leitores - hoje, dia dezessete de outubro de 2008, seis e vinte da manhã pelo horário de verão em Florianópolis, sob chuva fina e intensa veio ao mundo Nina Frechiani Leite Rost. Mãe e filha trabalharam por três longas horas por um parto natural. Três quilos e meio e 47 centímetros de gente. A vida irradia luz na manhã cinza e fria dos ilhéus. Os olhos de mel da mana Cora estão sorrindo. Amanhã estaremos todos em casa sob o céu do Campeche.

terça-feira, outubro 14

Sapatinho


Meus caros e parcos leitores, a vaca foi pro brejo - querem exterminar nossas crianças. Bem verdade, já faz tempão. Apresentadoras de TV ditando moda e mães loucas vestindo crianças com roupas que mulher nenhuma deveria usar em público não é novidade. Convenhamos. Shortinhos de malha adentrando hemisférios combinados com botinhas, tamancas, e blusas com decotes no umbigo, não dá. Se usassem entre quatro paredes, tudo bem. Mas aí, não. O divertimento passa ao largo. Também não dançam, descontraem, mal acocoram. Normalmente precisa-se de um macaco hidráulico para descolar os joelhos das malandrinhas entupidas de vodka. Em vez de orgasmos, lágrimas de culpa, insegurança e jorros de vômito cor de menta.
Quando vejo guriazinhas que mal aprenderam a caminhar andando desajeitadas sobre tamancos, tenho vontade de estrangular o pai e a mãe. Criança usa sandália, fantasia de sininho, chapeuzinho vermelho, princesa. Usa macacão com tiras de couro costuradas nos joelhos para proteger a pele dos raspões e das quedas. Usa camiseta, que de preferência chega ao fim do dia implorando por água e sabão.
Pelo amor de Deus, são crianças. Para aprender a equilibrarem-se são necessárias árvores, cordas, amarelinhas e elásticos. As pequeninas não aprenderam nem a correr sem tropeçar nos próprios pés e as loucas das mães já fazem delas mulherzinhas. Haja ortopedista, psicólogo e remédio controlado para dar jeito nas adolescentes que virão. Vai ser tanto do grilo nas cacholas que inseticida nenhum se arvorará a dar jeito. E pode ser ainda pior. Imaginem se os grilos extinguirem-se. Aí restará apenas um vazio filosófico lançando-as a um mundo de mentirinha onde se premia o tamanho das nádegas e o furo que vem no meio. Mais os peitos, panturrilhas e a altura do salto.
Agora alguns canais de televisão e a indústria do entretenimento fazem novas investidas. A Disney, por exemplo, está pegando pesado na programação para adolescentes. Mas as produções são tão abobalhadas para o público alvo que quem acaba assistindo, se o pai e a mãe permitirem, são as crianças entre sete e dez anos. E lá vai a vida como um índice - as etapas abreviando-se, a luz da brincadeira se extinguindo. Ora, pois, vale o lembrete, e qualquer antropólogo ou sociólogo de botequim disso sabe: o dia que não brincarmos mais, será também o dia em que pararemos de evoluir. Ludicidade, curiosidade, descoberta e evolução são frutas do mesmo pé, não se apartam. E se a primeira faltar, as irmãs nas ramas abandonadas negam-se a madurar.
Se a imagem que nos dão do mundo exige pressa, está na hora de nós, adultos, relembrarmos quanto valem os passos já fincados.
Quanto às nossas crianças? Que brinquem em paz.

segunda-feira, outubro 6

Minhocão


Viajar no tempo sempre foi uma coisa que tive vontade de fazer. E o que parecia impossível agora está bem perto de tornar-se factível. Isso graças a alguns astrofísicos. Eles trabalham com a hipótese de existir no hiper-espaço umas tais de minhocas cósmicas. Explico: seriam, segundo esses caras geniais, ou que andam tomando ácido além da conta, atalhos para sistemas galácticos além da velocidade da luz. E mais, como o tempo é relativo, e isso Einstein já sabia, e o GPS do teu carro também, essas trilhas espaciais poderiam fornecer o bilhete de ida e volta através das eras. Imagina só, viajar para o passado da humanidade? Eu, pelo menos, ia me sentir o cara. Putz, é só pegar o minhocão no ponto do Campeche e desembocar num surubão com o Calígula. E não ia ser o máximo dar um pulinho lá pros tempos das grutas e Pitecos? Dava até para ficar sabendo se os cromanhons comeram as neandertais, ou não. Eu acho que comeram. Tive uma colega na quarta série cujas características físicas não deixam dúvidas. Mas queria mesmo era voltar ao mundo mediterrâneo quando, conversa vai conversa vem, sempre se acabava em pólis e Afrodites. Não que tenha a intenção de entrar numas de peripatetismos, cavernas e reflexos duvidosos. A idéia passa longe de tanta nobreza. Gostaria era saber se Helena era tão gostosa para justificar a nicada suicida do Páris, ou se o cara tomou vinho ruim numa cumbuca mal lavada e morreu abraçado com um dragão. Se Helena não era lá essas coisas, depois de ferrar com o Heitor e a troionada toda, como último pedido o bonitão deve ter implorado pro Menê mandar os historiadores forjarem a fama da mulher. Que por sua vez não deve ter achado nada ruim. Afinal, cruzar o mar naqueles barquinhos e construir o bruta cavalão por uma bagaça haveria de pegar muito mal.
Legal também era dar um pulinho pras bandas de cá. Seria divertido comer coxinha frita dividindo o penico com D. João. O arvoredo todo, a lagoa atrás, a passarinhada - e a Carla Camurati espiando a gente de um arbusto. Só ia faltar o Cristo a pegar ar na sovaqueira em cima do monte e a Claudia Ohana discursando contra a gilette e tomando porrada do Peréio. Ops, tô empolgado e trocando as bolas. Essa era a Cissa. Mas já que estou viajando mesmo, ia aproveitar o gancho do segundo turno e ver de perto o Gabeira - pernões abertos, miss tanguinha crochê. Viva nós – ere merda de minhocão bom esse por descobrirem!
Quando batesse o cansaço, voltava pro agora e ia curtir férias num resort no Pacífico. Sim, por que a essas alturas eu ia ter grana pra cassete. Um highlander intergaláctico poderia se dar a esse luxo, não acham?
Não obstante, iria voltar ao passado para arrumar umas coisinhas. Ia dar uma chegada em Portugal, Itália, Espanha. Levaria um monte de extintor só pra esguichar espuma na bunda da inquisição, que de santa não tinha nem a intenção. Vai queimar fulano, fazer torradinha do cicrano (?), tome espuma no rabo. E o Tomás de Torquemada? Esse além da espuma dava para mandar empalar.
Pois bueno, assim que confirmarem a existência dos minhocões cósmicos, parcelo um bilhete no cartão. Se bem que só vão aceitar pagamento na bucha e em dinheiro vivo. Do contrário o calote vai ser grande. O sujeito compra a passagem, desce perto do primeiro buraco negro, e baldeia-se não se sabe para onde. Nunca mais cobram o sete um.



Imagem - Telescópio Hubble

quinta-feira, outubro 2

Endereço


Esses tempos botei no pau uma empresa que perdeu um negócio que eu tinha. Não posso revelar detalhes porque tudo corre em segredo de justiça. Se abrir o verbo, acabo comprometendo os trâmites processuais, portanto, lábios cerzidos. O que a boca fala o cu padece, já dizia meu avô Coelho. Mas o caso é mais ou menos assim: procurei os meus direitos por ter aprendido quando piazito que, se a gente perde ou estraga o que não é nosso, paga ou arranja coisa igual. Ora bolas, bem recordo que dei minha girafa pro vizinho em troca do rinoceronte de estimação dele depois do sumiço do bicho na caixa de areia. Também lembro de passar cal no muro da casa de um velho ranzinza depois de tê-lo sujado com argila. O bobalhão furava todas as bolas que caíam no seu pátio. Mas fazer o quê? Estraguei (?), tive de arrumar. Enfim, fui criado no perdeu, pagou.
Pois a dona juíza, depois de um ano, mandou me chamar. Me armei num traje alinhado, fiz barba, lambi os sapatos na graxa, e me toquei para a comarca achando que a autoridade ia bater o martelo - proferir sentença. Mas qual o quê! A magistrada só queria saber onde descanso a carcaça. Coloquei-me de pronto para todo e qualquer esclarecimento, obviamente, mas precisam ver só a trabalheira que deu. Para provar que moro onde moro perdi quase um dia inteiro. Primeiro sentei a bunda e escrevi meu nome, endereço, e depois todos os números que ao longo da vida calharam de me dar.
Escrevinhação impressa me toquei atrás das testemunhas. Coisa de louco. Não arranjá-las, mas sim explicar a cada uma a razão do ofício.
- Mas só agora ela te chama?
- Pois é...
- Mas não estava tudo lá na papelada do processo?
- Pois é...
- Mas que coisa, hein?
- Pois é...
- E o Gilmar... O que foi aquilo? E o advogado do outro agora é assessor jurídico da comissão organizadora da copa do mundo. Ainda por cima, é namorado da irmã do falcatrua. Onde já se viu? Em que tempos vivemos...
- Pois então...
Com as assinaturas em mãos chega a melhor parte: a hora do cartório. Coisinha gozada esse negócio das escrivanias da justiça. Que é preciso que se registre até entendo, mas quando preciso ir lá para dizer que eu sou eu e não o outro, e ainda pagar por isso, fico meio desconfiado. Outro dia o verdureiro seu Anastácio me contou que precisou vender um terreno para pagar ao cartório uma dinheirama pesada. Só assim para conseguir herdar a casa que o falecido pai deixou.
- Mas, seu Anastácio, não era do teu pai?
- Pois é...
- Não era só passar a casa pro nome do senhor?
- Pois é...
- E teve que vender o terreninho para pagar o papel que diz isso?
- Pois então...
Não é de se ficar horrorizado?
Bom, mas fui eu pro tabelionato com um monte de coisas na mão. Contrato do aluguel, conta de luz, um depoimento do vizinho em K7, mais umas fotos minhas cortando a grama do pátio. O sovaco ia apertado, tamanha envelopada. Botei tudo em cima do balcão. A mocinha descartou as fotos e a fita e começou a contar as folhas.
- Vai dar um dinheirão.
- É?
- Tem muita assinatura para carimbar, reconhecer as firmas.
- Não fabrico nada, não. Nem empresa tenho.
- Vai um bocado de carimbo.
- Pois então começa a molhar a almofada, tá comigo o talão do banco. Aceita pré-datado?
Foi um baticum que vou lhes dizer... Quando achava que tinha acabado, a guria cochichava no ouvido de uma outra. A assistente então consultava os livrões e logo vinha com uns selos para colar. E dá-lhe mais carimbo. Acabado o serviço, ela foi até o fundo da sala e deu o calhamaço para chefe que assinou folha por folha. Contei vinte e seis carimbos e dezoito assinaturas. Tudo isso para a juíza saber que moro logo ali no Campeche.
Agora é esperar. Quem sabe lá por outubro do ano que vem ela manda me chamar de novo. Se assim fizer, de pronto presto os esclarecimentos.

Dom Quixote - Ilustração Gustave Doré