domingo, novembro 2

Finados


Esse negócio de bater as botas, a caçoleta... Esticar as canelas, o molambo. Dar a lonca, passar desta para melhor, finar, morrer – a coisa toda da morte, daquela morte morrida, conheci pequeno. Em uma manhã de páscoa garoada o Bongo não levantou do gramado. Era um animal pra lá de bom. Acompanhava-me onde fosse. Brincava com quem devia, vigiava a retaguarda das esquinas, e mostrava os dentes aos malevos na intenção. Ouvi pela janela meus pais dando um rumo pro corpo. Pouco depois, quando saí pela porta, o pátio tinha perdido a cor. Anos depois vi morrer meu pato por descolamento da nuca. O malhadinho revirava a cabeça, retorcia o corpo tentando assentar a cachola no pescoço. Não conseguiu. Homicídio culposo. O assassino? Meu próprio irmão. O guri tentou ensinar o patinho a mergulhar no tanque cheio de sabão em pó com técnica duvidosa. Morreu em meus braços. O pai mandou o piá dar o dele para mim. Não quis. Algumas coisas não são substituíveis. O criminoso pegou vinte e quatro horas no quarto - saiu sob condicional de não chegar a menos de dez metros dos outros animais por um mês.
Tempos depois, já com uma certa intimidade com a foice da noite, resolvi praticar um pouco. Brincar de poder sobre a vida e a morte. Comecei matando camundongos a vassouradas e tiros de chumbinho. Mais refinado e flertando com o sadismo, repensei os métodos e passei a caçar ratazanas. Prendia os medonhos em uma gaiola, botava no tanque, abria a torneira. O desespero era tamanho. Os olhos esbugalhavam, das gargantas vinham silvos, das fuças brotava espuma. Os bichos mordiam o arame da gaiola e atiravam-se para riba de maneiras a escapar do martírio. Chegava a dar medo das feras desencarnadas e do cheiro de morte na lavanderia. Fiquei meio abochornado com o suplício dos nojentos e parei com aquilo. Vá lá que eram ratos, mas até para dar fim a essas pestes há que se ter limite.
Mas foi quando resolvi abrir meu primeiro mal fadado negócio criando codornas, é que me tornei homem de chacina.. Disseram-me que as pardinhas eram boas de sacanagem, e com matrizes de estirpe, num instante teria centenas delas. Só esqueceram de avisar para os machos. Os meus eram uns baita frouxos. Olhavam para as fêmeas e nada. Já as meninas, por assim dizer, para expulsar um mísero ovinho era uma trabalheira.
Depois de um mês masturbando “codorno” para que os testículos não empedrassem, e chuleando ovo, dei o ultimato: sem foda e cloacas produzindo, o panelão de ferro ia baixar do sótão. Promessa feita e preguiça entabulada dei de mão no Dona Benta, preguei dois cravos num toco sólido, e deitei fio no facão de poda. Na ausência das práticas, num golpe errado decepei metade do rosto da primeira desaventurada. Num vôo macabro a bicha foi estourar no peito de minha mãe que vinha pela porta. As companheiras amontoadas numa gaiola eram pura inquietude. Precisei de cinco horas de fogo brando para amaciar a carne das danadas.
Depois disso ainda vi esmarrir meu coelho de olhos vermelhos, o Campari. Morreu na boca do Ciborg, cachorrão brabo, guarda da casa. Estive também na definhação do Haroldo e da Giselda, marrecas que criava. E de mais um monte de pintos, passarinhos gatos e de pequenos quelônios fazendo às vezes de chicle nas mandíbulas da guaipecada. Ovelhas, leitões, bezerros e algumas caças, ajudei a dependurar em galho alto – todos carneados em virtude da boa mesa.
Mas nesse negócio todo, nada me intrigava mais que os garnisés dos despachos nas encruzilhadas. Admirava os galináceos estrebuchados cheio de respeito aos rituais dos sacrifícios. Como não sou de ferro saboreava uma balinha de mel da oferenda enquanto analisava a carcaça e amassava inquieto o celofane vermelho. Enfim, sempre achei a morte algo natural, inerente à vida. Se ela for com propósito, método e fé, melhor ainda. Chocado acho que só fiquei uma vez quando vi uma camiliana sem hábito ensacar uma ninhada de gatos para depois ficar arremessando a carga violentamente contra uma árvore repetidamente.

De gente morrida não gosto de falar, basta dizer que já esticaram os pelegos no descanso todos os meus avós. Sinto mais falta de um do que outro, conforme o dia e a situação. E que já vi por força de ofício cadáveres esmagados no asfalto, esburacados por bala ou faca em bancadas de necrotérios. Sem falar nas crianças mortas por infestação de bicho de pé.
De gente mesmo só posso escrever de mim por mais eu. É que da adolescência em diante passei a morrer também. Um pouco a cada dia. Um tantinho por cada amor perdido, por cada saudade suspensa no tempo. Ademais, em um por um dos meus rasgões as feridas latejam, e nem cromo ou mertiolato, nem sutura ou hipoglós, reza braba, simpatia ou macumba, são capazes de fechá-las. E isso nem quero. Se caminho para morte, que seja então com meus cancros. Lá no fim, até do pus deve verter algo de bom.

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