quinta-feira, outubro 2

Endereço


Esses tempos botei no pau uma empresa que perdeu um negócio que eu tinha. Não posso revelar detalhes porque tudo corre em segredo de justiça. Se abrir o verbo, acabo comprometendo os trâmites processuais, portanto, lábios cerzidos. O que a boca fala o cu padece, já dizia meu avô Coelho. Mas o caso é mais ou menos assim: procurei os meus direitos por ter aprendido quando piazito que, se a gente perde ou estraga o que não é nosso, paga ou arranja coisa igual. Ora bolas, bem recordo que dei minha girafa pro vizinho em troca do rinoceronte de estimação dele depois do sumiço do bicho na caixa de areia. Também lembro de passar cal no muro da casa de um velho ranzinza depois de tê-lo sujado com argila. O bobalhão furava todas as bolas que caíam no seu pátio. Mas fazer o quê? Estraguei (?), tive de arrumar. Enfim, fui criado no perdeu, pagou.
Pois a dona juíza, depois de um ano, mandou me chamar. Me armei num traje alinhado, fiz barba, lambi os sapatos na graxa, e me toquei para a comarca achando que a autoridade ia bater o martelo - proferir sentença. Mas qual o quê! A magistrada só queria saber onde descanso a carcaça. Coloquei-me de pronto para todo e qualquer esclarecimento, obviamente, mas precisam ver só a trabalheira que deu. Para provar que moro onde moro perdi quase um dia inteiro. Primeiro sentei a bunda e escrevi meu nome, endereço, e depois todos os números que ao longo da vida calharam de me dar.
Escrevinhação impressa me toquei atrás das testemunhas. Coisa de louco. Não arranjá-las, mas sim explicar a cada uma a razão do ofício.
- Mas só agora ela te chama?
- Pois é...
- Mas não estava tudo lá na papelada do processo?
- Pois é...
- Mas que coisa, hein?
- Pois é...
- E o Gilmar... O que foi aquilo? E o advogado do outro agora é assessor jurídico da comissão organizadora da copa do mundo. Ainda por cima, é namorado da irmã do falcatrua. Onde já se viu? Em que tempos vivemos...
- Pois então...
Com as assinaturas em mãos chega a melhor parte: a hora do cartório. Coisinha gozada esse negócio das escrivanias da justiça. Que é preciso que se registre até entendo, mas quando preciso ir lá para dizer que eu sou eu e não o outro, e ainda pagar por isso, fico meio desconfiado. Outro dia o verdureiro seu Anastácio me contou que precisou vender um terreno para pagar ao cartório uma dinheirama pesada. Só assim para conseguir herdar a casa que o falecido pai deixou.
- Mas, seu Anastácio, não era do teu pai?
- Pois é...
- Não era só passar a casa pro nome do senhor?
- Pois é...
- E teve que vender o terreninho para pagar o papel que diz isso?
- Pois então...
Não é de se ficar horrorizado?
Bom, mas fui eu pro tabelionato com um monte de coisas na mão. Contrato do aluguel, conta de luz, um depoimento do vizinho em K7, mais umas fotos minhas cortando a grama do pátio. O sovaco ia apertado, tamanha envelopada. Botei tudo em cima do balcão. A mocinha descartou as fotos e a fita e começou a contar as folhas.
- Vai dar um dinheirão.
- É?
- Tem muita assinatura para carimbar, reconhecer as firmas.
- Não fabrico nada, não. Nem empresa tenho.
- Vai um bocado de carimbo.
- Pois então começa a molhar a almofada, tá comigo o talão do banco. Aceita pré-datado?
Foi um baticum que vou lhes dizer... Quando achava que tinha acabado, a guria cochichava no ouvido de uma outra. A assistente então consultava os livrões e logo vinha com uns selos para colar. E dá-lhe mais carimbo. Acabado o serviço, ela foi até o fundo da sala e deu o calhamaço para chefe que assinou folha por folha. Contei vinte e seis carimbos e dezoito assinaturas. Tudo isso para a juíza saber que moro logo ali no Campeche.
Agora é esperar. Quem sabe lá por outubro do ano que vem ela manda me chamar de novo. Se assim fizer, de pronto presto os esclarecimentos.

Dom Quixote - Ilustração Gustave Doré

2 comentários:

Anônimo disse...

As eleições batem em nossa porta, devemos cumprir nossas obrigações
de cidadãos.E quem cumpre promessas
de campanha eleitoral?
Passadas estas "tudo continua co-
mo dantes no quartel de Abrantes"...
E o povo agüentando filas,mil
carimbos e calhamaços de papeis
para provar que é honesto.
Valha-me Deus!!!!!!!
Esa

Anônimo disse...

E tu achando que a causa tava no papo, e que o $$ tava no bolso!!Nada neste país é tão simples.


Betina