terça-feira, maio 3

Páscoa


De assassinos e suicidas todos nós temos um tanto e um pouco – é o preço para quem nasce. Basta escorregarmos vagina abaixo, ou sermos arrancando com hora e dia marcados através do corte no ventre encaixados entre dedos estranhos para começarmos a fenecer, e logo depois, a matar.
A condição é idiossincrática para quem, por algum motivo, vem para o mundo.

A questão não é o assassínio em si, puxar um gatilho e pronto.
Mas sim de que assassinar num repente faz parte de nossa natureza. É telúrico, atávico, instintivo, e, sobretudo, o passo da sobrevivência..
Também não é a de cortar os pulsos ou enfiar um cano gelado na própria garganta e disparar o ferrolho. A agressão contra a própria existência é contraditória, esfola o afã de perpetuação.
Mas sim, é questão, de que gente quando vive, mata e é morta todos os dias, a pequenos bocados.

Nosso primeiro e inexorável impulso de vida, pode bem predar, pode bem liquidar quem entre contrações e fincadas lancinantes se rasga para nos jogar para o chão. Mas a quem chega envolto no sebo da placenta, muito pouco isso importa – não há ponderação ou recuo, só há o impulso. E logo em seguida mais e mais impulsos de experimentação e de lambuzar-se em um mundo que está sempre mais adiante, e de gente que nos mina a saúde e nos arremessa para umidade da cova.

Nada vem de graça, nem mesmo a graça de Deus.
Tão pouco, o equívoco da maternidade.

A pólvora seca e esquenta ao tempo que esticamos, e o nó na corda aperta a cada passo dado.
E não adianta amansar, ou termos boa vontade.
Essa é a língua fosca daqueles que engolem dedos, mãos e braços.
Gente que se apossa de brasões dissimulando, longe do sangue, brincando no tabuleiro.
Essa é a língua daqueles a quem falta bandeira e perdem-se em camalionices


A morte não é a mãe, em uma frase por telefone, matando a filha.
A morte não é mais um homem pelado em frente à filha miúda de um outro.

A morte é teu dia que começa com o café na manhã, passa pela indolência de tua tarde, e descansa na noite de tua cabeça torta, deslumbrada, incapaz de perceber o que não seja fruto e vontade de tua confusão.
A morte é a tua casa, o pátio a quem nuca te permitiu, é a tua varanda vazia de plantas.
A morte é teu pai, a tua mãe, quem te cerca e te esconde.

A morte está em teus dedos, em teu toque mudo, nas tuas calças e sapatos de revistas couché.
Ela cresce nas tuas sombras, nos teus fios de cabelos grossos, aramados, secos pelas tintas.
Ela se enreda por tuas canelas feias, coxas gordas, pentelhos encravados e joanetes.
Ela caminha nos teus olhos plúmbeos e na tua língua grossa de papilas cegas que invade sem sutileza, desprovida de graça, atarantada e ansiosa.
Ela é a gosma dependurada em teus cílios longos de canecalon.

A morte não é a tua copla fraca e sem ritmo.
Não é a poesia que tu és incapaz de sentires ou trançar.
Tão pouco tuas idéias derretidas em coisas que discursas, mas não entendes.
Não é a tua dança esquisita, desengonçada, ou o barulho que fazes ao sorver o leite.

A morte não é tua boca suja sem argumento plausível, ou tuas pílulas.
Não é teus lábios murchos a vomitar ironias ébrias de vinhos.
Vinhos que não produzes e pelos quais, muito menos, pagas a conta.
Ela é o gesto largo, desastrado de afetação.

A morte é a tua escuridão, o teu disfarce. É a tua roupa moderninha.
A morte é teu compasso de ponta incerta incapaz de vislumbrar a emenda do círculo.
A morte é tua vista sem horizonte ricocheteada na amurada de neurônios que não se falam.

De assassinos e suicidas todos nós temos assim, um tanto e muito mais de um pouco.
E na páscoa, ninguém ressuscitou.
Pois então, fodam-se os Lázaros, os Batistas, os Jesuses.
Todos os doutos.

Dois pais mortos.
Valor. Proteção. Punho. Zelo.
Existe uma guria que me acalenta o sono e repousa em meus braços.

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