terça-feira, setembro 30

Malhada


Quando completei dezoito anos, como todo mundo que tem bolas entre as pernas, fui prestar contas a milicada. Andava meio perdido escrevendo uns poeminhas. Lendo sem entender bulhufas - Goethe, Alighieri, Verlaine, Rimbaud, Ginsberg. Se não fosse a farda teria de ser a Abissínia, trilhos, escravas brancas e ópio. Como me faltava coragem para barcos bêbados, resolvi sentar praça.
Soldado do segundo pelotão da segunda companhia do batalhão de infantaria motorizado. No mundo da caserna, soldado de infantaria é quem leva o ferro. A idéia é o combate corpo a corpo.
Quando veste a farda, o recruta primeiro se fode, depois se fode, e no fim, se fode mais um pouco. No mês de iniciação te enfiam no internato. Trinta dias para esquecer o mundo civil, gritavam os sargentos durante as vinte duas horas que permanecíamos acordados. A época era cascuda, e os novatos tinham de ser preparados rapidamente. Ano de eleição, a primeira em mais de duas décadas. Se os comunistas ensaiassem vôos mais altos talvez fossemos para as ruas. Ao menos era a esperança de algumas patentes.
- Vais votar em quem? - berrava o sargentão.
- No Freire, senhor.
- Milico não vota seu porco, infeliz. E esse aí é amigo do barbudo sem dedo?
- Não, senhor. É de outro partido, senhor.
-Acha que eu sou burro, guerreiro? A merda é a mesma, seu avermelhado, comunista. Tu és um bosta. Um filho de uma mãe perdida, e agora tu és meu, seu caganeira, remelento, carrapato de capivara.
E dê-lhe paulada no capacete. Flexões, agachamentos e giros num pé só no prédio da companhia.
Passei três meses limpando o mijador de cento e vinte pirocas, algumas tomadas por cancros, fimoses e sífilis, fora a catarreira. Ter respondido aquela maldita pergunta me trouxe o inferno. Foi quando comecei a aprender a sumir, ficar invisível, a desaparecer no meio do oliva e ressurgir só na hora certa.
No quartel diz-se que há somente duas maneiras de fazer as coisas: com gosto ou com raiva, mas sempre com energia. Optei pela raiva. Quando avançava contra turba imaginária fincava a baioneta nos rins dos subversivos e berrava o mais alto que podia. Quando mandava a foice contra o capinzal na limpa do pátio, não sobrava nada. Se fosse varrer, gastava a palha da vassoura, se fosse cantar, era o mais desafinado possível, mas o mais alto também. E se fosse marchar, não havia quilômetro, terreno, ou peso de equipamento que me derrubasse. Assim ganhei o respeito dos cabos, da sargentada, do oficialato, e o mais importantes, dos meus iguais.
Foi me valendo de disciplina e paciência, e da noção do que acontecia em minha volta, que me mantive longe da cadeia e depois das faxinas e trabalhos pesados.
Mas o que te mata mesmo lá dentro são as guardas. Ao longo de um ano prestei setenta serviços como vigia da pátria. Frio, chuva, geada, sol de rachar lábios e queimar retinas – madrugadas insones e dias lânguidos. Horas olhando para o nada com um fuzil na mão. E esse era o maior problema. O nada suscita idéias, inquietações. Alguns piravam, e com poder de fogo ao alcance do indicador. No quartel tem todo tipo de gente. Pobre e rico, analfabeto e letrado. Bandidos, cafajestes, homem forte e homem fraco.
Passei uma madrugada pisoteando os miolos de um infeliz que enfiou uma bala na cabeça dentro da guarita. A ferrugem do sangue do cara até hoje me incomoda o olfato. Em serviço não se brinca nem brincando. Um vacilo, uma bobagem, e podes acabar na cadeia por anos, e então, adeus vida civil. Por ter sacado o perigo, tinha para mim que pelo meu posto ninguém passava. Minha arma, ninguém roubava, e ficar absorto, nem nas piores calmarias.
Foi numa noite de julho, fria de renguear cusco, com a neblina baixa e densa engolindo o posto avançado, que os maricás estalaram no matagal.
- Alto lá, nem mais um passo.
Mas do mato, veio ainda mais barulho. Carreguei a câmara do FAL e liberei a trava de segurança.
- Alto, seu bosta. Se avançar leva fogo.
E nada do mato acalmar.
- Merda, merda, merda. Mil vezes caralho. Ai, ai, ai... Comigo não. Disse em sussurros para o nada, apavorado, branco de medo.
Se invadissem por ali e não fizesse nada, acabava na cadeia. Se abrisse fogo em vão, inquérito, dor de cabeça, incomodação. Que sinuca! Apertei o gatilho e a bala afundou na terra. Era a última advertência. Ouvi as sirenes do batalhão acionando o plano de defesa enquanto a barulheira nas macegas crescia em minha direção. Conseguia escutar os coturnos da guarda assumindo posições, mas meu reforço tardava.
- Não vai dar tempo, Foda-se.
Taratatá. Três tiros e um corpo tombou. Pelo barulho, um corpo enorme.
- Que é que esse gordo queria, porra! Matei o gordo, matei o gordo.
Das macegas veio o lamento e a agonia. De tão alto parecia um mugido.
- Mas é um mugido, é um mugido.
Quando tocaram o farol, lá se viu a malhada no chão. Pobre da vaquinha. A língua de fora, a respiração ofegante. A soldadesca pulava enlouquecida. Uns já puxavam a baioneta para tirar-lhe o couro, outros anteviam a carne na brasa.
- Alto lá, gritou o tenente. Deixem a vaca morrer em paz. Oh, Bráulio.
- Sim, senhor.
- Puxa a reza pra encomendar a alma. É bicho, “mas tem alma sob o couro”.

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