segunda-feira, março 14

Água-Viva




A madrugada vai alta, o céu marinho.

Canários e pardais de barrigas vazias nas galhadas atiçam o arvoredo.
Os lençóis rotos de insônia e suor seco me tiram da cama mais uma vez.
Tentei de tudo – assisti dois filmes, li cento e cinquenta páginas, tomei uma cacimba d’água, jantei duas vezes.
Fumei uma caralhada de cigarros na varanda, molhei tudo no quintal: primeiro as alamandas, as flores baldias, as orquídeas. Depois as folhagens que plantei sem saber o nome, as bromélias, as espadas de Jorge. A mangueira, o abacateiro, e até os inços que teimam em crescer a revelia do tesourão.
Nada adianta - não durmo.
Olho para as sombras na parede e em vez de patinhos, cavalinhos, girafinhas, amebas, vírus, bactérias, águas-vivas.

Provocam-me as sombras dessas coisas de uma ou poucas células tão pródigas em perpetuarem-se. Centenas de milhões de anos de incubação, de espera em bolhas quentes para então desmembrarem-se - e eis a costela de Adão viajando na explosão cambriana .
Mas foi esticarmos a coluna para começarmos a inventar bobagens e acreditarmos que o tamanho de nosso cérebro e nossas habilidades com gravetos nos catapultariam a testa de tudo que vive.
Se desperto tendo a concordar que a abstração tende a transforma-se nas culturas que bordam o homem, minha insônia me diz que ao tempo que ela nos recria também impõe a marcha ao extermínio.
No espelho, a esta hora da madrugada, meus olhos sussurram-me que quanto mais nossos códigos anabolizam e eletrificam nossos neurônios, mais diminuímos as possibilidades de sobrevivência. Segredam-me eles, mesmo embaraçados e tontos, que nossa capacidade de abstração não é o cano do fuzil, mas a culatra. E que para singrar o tempo, e isso até uma ameba sabe, precisamos abandonar as penduricarias.

Rasuramos palavras em papel ou telas iluminadas, esculpimos deuses e monstros em mármore e madeira. Pintamos a história em manchas inteligíveis, tentamos reproduzir nossos batimentos cardíacos através de caricaturas, traços tortos, retas longas, de círculos em elipse. E assim vamos pincelando desvairadamente aquarelas de fantasmas desviados no empenho do assombro de nossas próprias casas.
Imaginamos negros pernetas, caminhantes de pés virados, coisas ruins com piteira entre os dentes, cobras com cabeças em chamas, répteis que se tornam mulheres, mamíferos do rio que se vestem de homens, fêmeas que se deitam em pedras a afiar os dentes.
Não sabemos pelo que vbale respirar e mergulhamos em mitologia para sobreviver. Negamos-nos a uma vida fantástica em nome da projeção do fantástico.
Se não me engano foi Platão quem apontou o dedo para as caverninhas de águas espelhadas. E que foi Aristóteles quem externou a idéia de que pensa melhor aquele que anda.

A groselha de meus olhos não quer mais refutar a água-viva
- Tu és um caminhante ereto, me diz ela, e deves perceber a deformação de tua coluna. E ainda que isso me assuste, firmo meus olhos na vermelhidão.
Não sou Saci, Curupira, Boitatá, Caipora, Teniaguá, Boto ou Iara.
Sou só o fantasma otário que se esmera em me assombrar.



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