quinta-feira, dezembro 16

A vida útil, apesar do tempo – Cartas I – O espaço


Sinto o teu cheiro pela casa. Tu andas pelas frestas, te escondes no meio da porcelana, espias por entre as colunas de livros. Os teus cabelos instalaram-se na pia do banheiro. Tuas unhas nas cortinas. Teu gosto se levanta cada vez que encosto o rosto no travesseiro.
Presilhas de cabelo, sandálias, colares, calcinhas.
Tu estás na manhã que calçaste minhas alpargatas.

Teus pés pequeninos sobre as cordas gastas fincaram marco adentro de minhas fronteiras. Durante dois meses foste paulatinamente deixando tuas coisas nas minhas coisas, nos meus lugares. Primeiro o mel no banco de trás do carro. Depois a blusa, os cds, as roupas no meu armário - o teu reflexo em meu espelho.Naquela manhã de alpargadas e cordoaria, uma bruma leve e clara de jasmim invadiu a casa, e nunca estiveste tão bela.
Com a tua presença molho o futuro, a hortelã, a pimenteira. Borrifo o xaxim das orquídeas, o toco das bromélias, e com um espirro d’água te desenho no ar.
A cada lufada de vento aguço o faro. Procuro sinais, tendo adivinhar se ele chega do norte e, por ensejo, anuncia notícias tuas.
Sei que tardarás a voltar. Mas ainda assim posso te contornar nas folhas eclodidas na madrugada. Quanto elas assumirem a coloração das irmãs mais velhas agarradas na galhada farta, será o dia de tua volta.
Ocuparei o tempo com adubação, corte e plantação de novos ramos.
Vou sentir o aroma da terra, verificar a umidade, a química de que é feita. Medir o teor de calcário, fósforo, ferro, estrume. Procurar minhocas, sementes, ossos, restos de invertebrados mortos. Vou medir o índice pluviométrico, a incidência de sol, o peso do orvalho sobre os grãos.
É isso, arrumar os canteiros.

Vou por sobre o criado mudo as conchas que me deste.
Lembras que elas haviam sumido? Achei. Todas estão arranhadas, desbotadas, alquebradas, imperfeitas, lembras?
Mas tu disseste: “são como você, cheias de defeitos, mas eu quero mesmo assim”.


E eu que dentro de um um ônibus corto a 101 quente lendo Kaddish com as costas suadas, e retorno sob a garoa fina, letárgica, concatenando versos para dizer teu nome, tomando café num boteco ensebado cheirando a fritura com pulgas aloucadas pulando sobre as mesas.


Então são luminosos, tripés do mundo – viadutos de crianças nuas. E fumo seguidamente até que a ânsia de vômito de um nó na garganta – e depois vou trôpego pelos corredores do metrô.
No fundo, três bichas borradas de tinta sobrevivem no domingo.


E nas passarelas, pórticos – quimeras de dores tantas, felicidades esclerosadas de um circo falido martirizam o bailarino manco que tem como aplauso o estupro de suas convicções mais íntimas.


E a obesidade de meu tempo, fósseis de minha raiz, com lágrimas coloradas em poéticas vampiras me faz morrer com uma boceta desconhecida, áspera, perdida, com meu pau de mármore nas mãos esperando por um telefonema.


E eu que amei Rimbaud em seu barco bêbado – “Dans les clapotements furieux des marées”. Wittman em sua democracia. Miller bêbado de sacanagens, Keruak invadindo Denver. E saí pelas ruas gritando teu nome em versos roubados acreditando em sofismas, em metáforas, em megalomanices de impacto.



Continua...

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