quinta-feira, junho 16

Travado

Travado em frente à tela.
Travado e em pelo de cobertor e alfabeto.

Pelado de verbo, adjetivações, pronomes e sintaxe.
Pelado de concordância, de conjugações pretéritas e futuras.
Falta-me até a soldadesca de substantivos, indefinidos ou não.
Hoje consoantes e vogais abandonaram-me
Repudiando danças e cópula,
Negando-se a brincadeira do teclado com as mãos.

De mim nada se compassa, rabisca, ou se forma.

Hoje está forçado, doído, espremido... Uma bagaça.
A porra do freio de mão embestou de ficar puxado.
As engrenagens não se encaixam,
Os pistões não empinam,
As velas não faíscam.
Fugiu a correia, o câmbio,
O cabo de aceleração, o pedal, e também a direção.
Falta-me a ignição, a combustão, os rolamentos, a graxa.

Hoje a consecução mandou a frigidez,
O estéril e a inaptidão, em seu lugar.
Meu útero enrugou,
Minhas trompas estão ao avesso -
Minha vagina, lacrada e seca.
Não consigo sequer abrir as pernas
Ou subir os dedos pelas virilhas.

Não tenho cheiro, gosto, ou umidade.

De mim nada precipita-se, escorrega, ou se pari.
Hoje me surrupiaram as musas,
Os deuses, as partituras, a flauta e as cordas.
Tiraram-me o canto, a voz, o timbre.
Os fonemas diluíram-se na rouquidão.
Minha língua é uma cãibra e meus lábios estão agrilhoados por crinas em pontos.
Não consigo sequer soprar um conto
Ou assobiar sandices.
Tão pouco sussurrar pequenas e miraculosas inverdades.

Falta-me o bisturi,
Sobra-me o cansaço.

Ao menos não vou dormir de castigo - eu acho.
Vai ver tudo de muito disso, é que dia sim dia não,
Eu acabe sentindo frio.
Nada de novo – os mesmos bosques, barbas de pau, faunos e gralhas.
Tudo do mais do mesmo, desde pequenininho.
Muito bom e ao meu bem que por agora,
Flutua entre as copas uma mulher branca
Que trás aos ombros azulões, canários e calafates
A alumiar. E que diz meu nome, e do travesseiro, sonolenta, pergunta:
“Marco, o que foi que te deu hoje?”

Nenhum comentário: