segunda-feira, setembro 22

O rancho


Lá pros lados da Armação, no pé do morro da praia do Matadeiro, tem um ranchinho taipas tortas escondido entre as figueiras. Dona Lavínia toca o sítio com esforço, ela e as quatro filhas que foi adotando toda vez que as irmãs do sagrado coração apontavam na trilha com mais uma enjeitadinha - hoje, já todas mulheres moças que respondem pela assinatura que desenham com dificuldade em qualquer folha de papel que lhes alcança a mãe. Cega confiança em agradecimento à mulher, que mesmo com o útero extirpado jorrava leite pelas tetas a cada criança que lhe atiravam ao colo.
Plantam e criam por lá um bocado de tudo. Porcos, galinhas, codornas, patos e marrecas. Duas mulas para ajudar a revolver a terra, uma vaquinha bem boa de úbere, e três curiós que chafurdam alpistes e alegram os dias. Semeiam cebolinhas, repolhos, couves, tomates, cenouras, beterrabas e o que mais a terra já cansada permitir que cresça. Distribuem as verduras e leguminosas nos mercadinhos da região. Tudo muito orgânico como hoje se quer. Assim, em muitos jeitos, vão alinhando o caminhar. De segunda a quinta-feira, os dias passam entre enxadas, pás, arados e sementarias. Dá gosto de ver as gurias no mexe-mexe dos canteiros. Quando chega a sexta, dona Lavínia suspende a lida e o galo canta sem serventia. As moças dormem até o sol bater no alto da capelinha no monte das pedras. Enquanto a manhã vai andando, a manca toda banguela, que um dia apareceu não se sabe de onde e acabou ficando, mata uma galinha bem gorda e na lenha reforça o caldo do almoço.
A tarde se perde entre banhos e cheiros. Dia de navalha nos sovacos e virilhas, pinças e escovas. Oito pernas bem lisinhas que a água do poço amacia. Enquanto as bichinhas do barro se transformam e perdem-se entre talcos e pompons, a velha vai ajeitando o terreiro. Varre, limpa, enterra o folharedo pra lá da pocilga. Puxa as mesas e cadeiras de dentro - dá ordens dali mais acolá. Grita que a manca se mexa, pois a tarde já vai caindo. Passa revista nas bebidas e rapapés, futrica os caixotes atrás dos copos plásticos, sacode conhaques e canas de modo a memorizar o nível de cada garrafa. A renga puxa os fios, emenda as gambiarras, e entre meia dúzia de choques que a mantêm em alerta pendura as luminárias na figueira grande e já confere em dois pulos a vitrola e vinis. Com a noite enluarada, sete e meia já passadas, atrás do morro da Matadeiro, acende-se a lamparina colorada.
Galhofas, pés dançantes e risadas. Sob a figueira, ciscando no chão batido, cada um dos convivas há muito conhecidos cortejam as preferências. Já avançam todos nos tremelicos e papadas. Batem chapas em céus de boca, salivam e se lambem ao ver as guriazinhas tão tenras. Carne durinha, tetinhas empinadas, pelinhos perfumosos. “Ah, que graça e benção nos dá dona Lavínia”, mascam entre dentes e esfregar de mãos os orelhudos. Mas a velha, que de besta passa longe, só permite além da dança algumas mãos escorregadias e arretinhos fugidios sobre calcinholas. Enquanto a baba dá brilho às queixadas, a manca se arrasta a esturricar os copos. A alcoviteira, por sua vez, passa em ronda e recomenda moderação. É o sinal para que remexam os bolsos. Nota sobre nota em toda mesa por um bem comum. Se a quantia for satisfatória, ela manda vir a Ritinha por nome da satisfação. A branquelinha de natureza quieta, que dos lábios só escapam murmúrios, ilumina o terreiro. Ausente nas culpas, sem ter em vida batismo, página cristã, circuncisões ou gritos a Javeh, é o próprio orvalho umedecendo o arvoredo. Os narigudos juram pela vida e verrugas um momento a mais de mocidade. Querem-se mortos por um fluxo novo de sangue, desfalecem no vislumbre da carne que goza com as raízes da figueira. Pulam das cadeiras, apertam os bolsões das pálpebras, esfregam as varizes, em ais desconjuram os ossos carcomidos. Acabada a dança, lamentam os sacos rendidos e o trote da Ritinha lá sumindo na escuridão.
Estão exaustos, trôpegos, e vão pela trilha com o sol incomodando as vistas - Oxalá guarde a velha, a manca e as guriazinhas que ainda lhes permitem sonhar. Na segunda, pés e argila. E que a terra frutifique muitas folhagenzinhas, raízes e jacarandás.

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