sexta-feira, setembro 26

Urutu-Cruzeiro


Quando nasceu Garibaldo, o pai foi logo dizendo:
- Esse há de dar nó em rabo de Cruzeiro.
A mãe não gostou da anunciação, lhe cheirou a mau presságio. Dona Ana tinha suas razões. Do início ao fim da gravidez sentia o guri inquieto além da conta. Mal o embrião havia tomado forma e o piá já fazia força para sair. No sétimo mês não deu mais para segurá-lo, estava grande demais a chutar as paredes da barriga. Nasceu no meio da manhã embaixo dos lençóis que quaravam no varal. Escorregou pelo meio das pernas da mãe e pronto, despencou no capim alto. Quando o pai chegou, Dona Ana já o tinha no colo, quatro quilos de criança de olhos arregalados olhando pro mundo. Seu Toribio cortou o cordão com a faca de castrar novilhos e caminhou até a lagoa. Quando o mergulhou nas águas o alarido da bicharada correu os água-pés, e pelos tocos secos das margens ouviram-se os guizos das cascavéis.
Cresceu numa ligeireza espantosa e tudo foi fazendo muito cedo. Levantou e caminhou rápido demais, correu atrás de tatu e deu pedrada nas saracuras rápido demais, armou arapuca e pelou lebres rápido demais. Aos cinco anos tosquiava ovelhas no tesourão e capava bezerro feito peão crescido; e já aos sete, cumpriu a profecia do pai dando o nó na sua primeira Urutu. Nem bem fazia seus onze anos e dos brejos da região era monarca. Conhecia cada alagado, a infinidade de canais que interligam lagoas e rios.
Aos quinze anos, diante dos olhos vermelhos de Dona Ana, cismou de construir um navio.
- Saio pelo mundo logo em breve, que a avó dê pé às rocas e aos teares e o vôzinho esquente os caldeirões e venha com o tanino. As velas hão de ser coloradas.
A mãe atarantada tentava lhe devolver a razão:
- Um navio, Garibaldo, tu vais para onde? No fim de cada lagoa vêm os campos, e por lá tu já ficas encalhado.
- Ponho rodas no casco, respondia, se o italiano fez, também posso, e o mar ganho logo adiante.
- Mas em que propósito, desesperava-se a mulher, tens um mundo aqui, e aos teus pés.
- Me vou para fincar bandeiras que pra lá dessas terras está tudo virado e reina a desordem.
- Tu precisas é de um termômetro que a febre já te enlouquece.
- Se o piá quer dar ordem ao mundo, que se vá - gritava seu Toribio em reprimenda à mulher.
Um ano mais tarde, quando a madeira bateu na água, assim como no dia que chegou ao mundo, o alarido se fez mais uma vez. As velas estufaram-se aos ventos do sul e a proa quebrou o sossego da lambarizada. À frente, a Ururu-Cruzeiro talhada em carranca, mirando o norte pôs-se em alerta e esticou a língua no farejo.
Garibaldo ganhou as águas e com rodas improváveis atreladas ao casco, também os campos.
“Coloco barrigueira nessas mulas e quebro-lhes as queixadas com um bom freio de metal. Aí quero só ver se continuam essa judiação sem fim. Basta de piá ranhento e guriazinha de pé no chão. Chega de taipa como parede e morada sem reboco. Na mesa de todos outros há de ter muita lingüiça, carreteiro, trigo e feijão. Quero toda a gente estudada, sabida das letras, economias, leis e ciências”, ia ele assim tagarelando em solilóquios com a noite e as imensidões.
Três meses depois de sua partida avistou o farol, a saída para o mar. Hasteou no mastro alto sua bandeira e afagou a Urutu, mas no primeiro bafejo da maresia o mundo escureceu. O vento salobro entrou por suas entranhas e em sal o transformou. No convés, um punhado branco no sopro logo foi-se. Longe, lá na beira da lagoa, Dona Ana olhava quieta os peixinhos na linha da margem:
- Ai, meu Pai... Quem mais sabe, além de nós, que lambari não se cria em marola salgada.

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