segunda-feira, setembro 8

Por Cora e Nina

O calor fora de época bateu na casa dos trinta. Além de quente está abafado. Um vento forte e quente sopra, zune, atiça a terra levantando a poeira que rodopia e vai tingindo de marrom o arvoredo. Os cães estão ouriçados. Rolam, coçam os olhos, esfregam os ouvidos no chão - desesperam-se para estancar o zunido. Nos pastos os potros trotam inquietos. É a primeira vez que experimentam tamanho sopro. Giram em volta das éguas, disparam em direção ao aramado e retornam às mães para cutucar-lhes os ventres e voltar ao útero. Como não conseguem, cismam com os quero-queros negando aos bichos acesso a cacimba. O juncal deita e chicoteia o espelho d’água. As saracuras na falta do abrigo correm atarantadas. Quem vai sem barbicacho corre abestalhado, revoluteia feito mariposa. São as ventanias de setembro conclamando tormentas. A coisa vai encrespar. Na fronteira o horizonte já se acinzenta. Quando o mau tempo chegar aqui e esbarrar no calorão as nuvens pedirão emprestado o verde do musgo e a força do gelo. O céu vai desabar.
Quando piazito, na casa de praia, recebíamos o temporal em festa. Casquinha torrada, puxa-puxa, mariola, toró em devaneio. As calçadas eram tomadas pelas águas. Saía a pedalo com a monareta dourada, o bando e o sulco para trás. Tinha um beco logo adiante. Para nós parecia longínquo demais, além mar. No fim, um sobrado abandonado lembrava um navio. A enxurrada trazia a areia, a rua ficava lisa, asfáltica feito o litoral que se alonga do extremo sul. A nau encalhada era um regozijo. Os pequenos piratas dançavam a conquista no sibilo dos ventos que açoitavam os pinheirais. Pilhávamos, dávamos velas aos mastros, ganhávamos um mundo que sequer imaginávamos. Quando as águas baixavam errávamos pelo bairro para avaliar os destroços, procurar pequenos tesouros perdidos, quinquilharias que o mar trouxera e deixara para trás no recuo. Mulheres e homens gritavam de suas varandas enlameadas para que voltássemos para nossas casas, que evitássemos as bocas de lobo abertas. Mas não, éramos exploradores que agora já se viam no pasto alagado. Com as cavalariças abertas pelo vendaval os animais corriam soltos. Cercávamos os zainos, ruanos, baios e vermelhos. Montávamos em pêlo, crinas entre os dedos, patas levantando o aguaceiro do charco. Que mundo grande aquele nosso! Mil tiros de laço não o prostrariam. Não precisávamos de mais nada. Se a peonada chegava e com o relho em riste nos fazia correr, ainda restava a captura dos gerinos desalojados de suas sangas. Um laboratório a céu aberto oferecendo experimentação. Levávamos para casa espécimes em diferentes estágios de crescimento. Queríamos ver a cauda cair, as pernas crescerem, o corpo achatar, mantê-los cativos até a metamorfose anunciar-se pronta no primeiro coaxo. Depois os devolvíamos ao banhado para que perpetuassem o ciclo e nos dessem mais filhotes na estação vindoura.
Os verões, os invernos, as tempestades, as gerações de sapos, rãs e potros, todas passaram.
O navio, os pastos, as sangas, os exploradores, não estão mais lá. Nem a casa e a velha italiana gorda que nos alimentava com tripadas, massas e doces para que tivéssemos sempre energia e imaginação para singrar vidas. Foi-se ela, nossa coragem, os dias intrépidos.
Acho que é por isso que quando o tempo vira, quando a tormenta se anuncia, quando a trovoada me faz surdo, o tempo volta pra trás. Se tudo se foi, me restou o vento. E abro os braços para ele – e que me leve, me leve. Me assanhe a alma, sacuda o meu corpo, embale meus braços e junto os novos berços de onde saltarão minhas extensões para perpetuar o ciclo - vicejar nas estações vindouras.

4 comentários:

Jana disse...

Sim, estou grávida. Sim, sou suspeitíssima. Sim, ando muito emotiva. Mas a verdade é que tinha lido este texto antes, em casa, e já tinha chorado um bocado. Desta vez, tive que engolir em seco para não dar vexame... Aiaiaiaiaiai...

Anônimo disse...

ô, cacete, achei lindo isso, Marco! Quase desenhei, se eu soubesse (sabia mas desaprendi...). Mas me deu vontade!
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E já te arrumei mais uma leitora, nossa amiga carioca Nara. bjs

Anônimo disse...

O texto é lindo, mas eu gostei mesmo da foto. Saudades dessa vista, do pátio, que está logo abaixo dela, da Amy Winehouse tocando pela enésima vez no carro, da Cora, que é uma coisa indescritível, e dessa minha querida família catarinense.
E quanto ao casório, por favor, avisem com um tiquinho mais de antecedência do que da outra vez, para eu não ser obrigada a quase comemorar a falta do carimbo que me salvou de perder o evento.
Beijo,
Cacá

Anônimo disse...

Tchê, duca! Vc tá inspirado! Beijão na Jana, Cora, no piá a caminho e prá vc tb, porra!

Thelmo