quinta-feira, setembro 18

Serestas










Carro bom é o Doginho Polara. Poucos ainda rodam por aí. Painel de madeira, bancos estofados, câmbio longo, macio feito seda. Quarta marcha que estica dos trinta aos cem na brincadeira. E pára por aí mesmo, que Doginho é carro pra conforto e não velocidade. Foi num desses que aprendi a dirigir.
Faltou canha na festa em homenagem ao nosso deputado e o cantor e anfitrião mandou buscar mais trago.
- Sabes dirigir?
- Sei... Pero no mucho.
- Então te toca pro bolicho e pega umas rolhas com butiás, alfazemas e alecrins. A chave tá pendurada na gaita.
Não me assombrei. Tinha uns quinze anos e já era hora de botar cabresto nos motorizados.
Daquela noite em diante o Dodge virou parceiro. Noitadas de serestas e caça, eu mais o filho do cantor, um guitarreiro de mão cheia. Vez que outra o bichinho dava uma encrencada. Rompia uma correia, afrouxava uns parafusos, ou parava por falta de gasosa. Com cinco cruzeiros no tanque não havia milagre.
Mas quando engasgava dava boa causa. O carrinho conspirava por nós. Ficar sem condução rendia boas histórias, elevadas ao cubo é claro, para descolar uma Kit com sofá-cama e um banheiro com calcinhas dependuradas nas torneiras. Raramente comíamos alguém, não podíamos trair a confiança. O barato era dormir juntinho – e quem sabe(?), a semente estava no campo e outras noites viriam. E vieram com muita seresta. Até debaixo de janela de hospital chegamos a cantarolar. Obviamente para dar explicações ao delegado logo depois. Pela graça eu conhecia o homem, chegado a uma farra e freqüentador de tablados de centros de tradições. No plantão da autoridade, um branquinha de Santo Antonio da Patrulha e acordes missioneiros. Quando fomos embora recomendou ausência de cantoria a menos de mil metros de asilos, hospitais e casas de repouso. Nos bairros, liberou as serenatas e deu ordem para que não fôssemos incomodados.
Nosso costume era acabar a noite com um bom carreteiro para recompor a ossada e ganhar o dia. Se não tinha carne, era charque, se faltasse o charque era com bonzo e café forte - depois, óculos escuros e trabalho. Quem andava sem rabiscos na carteira ia cumprir os bicos compromissados. Os que nem biscates tinham solidarizavam-se. E como isso era levado muito a sério, ou ficava em vigília, ou ia ajudar o biscateiro com o serviço mais leve. Um dos nossos era habilidoso por demais. Entendia, assim mais ou menos, de elétrica, hidráulica, marcenaria, jardinagem, limpeza de calhas, higienização de canil... Enfim, coisas de toda ordem. Quem ia ajudá-lo ficava ao lado feito um dois de paus. Mãos nos bolsos, dedões e calcanhares disputando a base do chão, pálpebras semi-cerzidas de olho pequeno na empregada.
-Passa o jacaré.
-Tó.
-Isso é um alicate, cacete.
-Usa isso mesmo, porra.
-Não quer sair.
-Puxa com força.
-E se estourar o cano?
-Tem um rodo ali no canto.
-Então agarra as minhas pernas.
-Eu não!
-Pega, caralho.
-Pra que, seu bosta?
-Tô entalado.
-Sai daí de uma vez e dá de mão no cheque, amanhã tu terminas.
-A junta ficou solta, vai dar merda.
-Se reclamarem tu diz que foi a empregada que bateu quando foi limpar.
-Simbora.
Raramente participava dessas pequenas aventuras. Meu trabalho era outro. Na época, eu vendia armas de caça, revólveres, pistolas, galochas, armadilhas, anzóis e tudo mais que fosse imprescindível para um bom acampamento. As armas tinham nota e autorização do comissário meu amigo, que fique claro. A única irregularidade era a grana por baixo para o escrivão acelerar a emissão de registros e portes.
Para ficar acordado botava semente de guaraná debaixo da língua e uma cuspideira no chão. Encostava no balcão dos cartuchos e ficava de butuca nos peitos da Terezinha. Guaraná e peitões, receita boa para manter-se em pé.
Quando se achegava o arrebol, começava tudo de novo.
A viola com o Sérgio, o Lauro no vocal, o Agenor no coro e no deslocamento das bebidas, e eu no bongô. O Lauro não cantava nada, a gente dava graças a deus se ele não vomitasse entre um verso e outro, o Agenor normalmente derramava a canha nas congas e meias carpins roxas que não tirava nem para trepar, o que fazia bem pouco por conta de um bigode indecente, e é claro, das congas brancas com cadarço pretos que ele amarrava na canela. Tempos depois ele foi banido dos saraus quando se descobriu que gostava de coçar o cu com as escovas de dente das anfitriãs. Já eu não sabia sequer esticar o coro do meu instrumento, quem diria bater alguma coisa. Mas fazia de conta muito bem e com cuidado para não atrapalhar o Sérgio que era o único que sabia o que estava fazendo. Quando a cantoria era mais reservada e intimista, minha modéstia impedia que tocasse e gentilmente cedia o instrumento para alguém pagar o mico. Ficava com as declamações.
Acho que envelheci uns dez anos em dois com o giro alto daqueles dias. Quando fiz dezoito anos acabei no quartel. Nas noites de guarita continuei com o guaraná, mas em silêncio e sem peitões, meio chateado vendo o doginho polara passar na avenida em busca de tertúlia.

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