segunda-feira, agosto 25

Fumaça


Fumar é uma bosta. Como fumo desde os quinze anos, posso deduzir que estou chafurdando na merda há um bom tempo. Pertenço ao vício? A responsabilidade é inteiramente minha? Não tenho a menor dúvida que sim. Em defesa do indefensável só posso argumentar que o silogismo não era passível de aplicação quando abocanhei meu primeiro filtro. Primeiro porque não tínhamos metade das informações que temos hoje. Segundo, pelo simples fato que todo mundo fumava. Quem pitava era legal. Por Hollywood, era mais que isso, era cool. Fuma-se nos filmes para encantar as mulheres e depois comê-las, e fumava-se também, e isso era imprescindível, depois de tê-las comido. A impressão é que a primeira baforada nos lençóis era tão boa quanto a primeira gozada. Até em desenho animado as personagens fumaravam. Quem não lembra dos charutões e cigarrilhas em Hanna& Barbera!
E nos comerciais então? Para a conquista de uma montanha só inalando muito fumo durante a subida. Já no pico, relax, e dê-lhe fumaça no horizonte. Fico imaginando os caras no meio do K2 dando uma boa tragada. Bobagem, os êxitos eram tremendos. Navegava-se de Hobiecat em velocidades assustadoras. Cavalgava-se por pradarias infinitas. Quando não se estava domando os mares, conquistando cordilheiras ou cavalgando por um poente ao encontro de um pescoço em echarpe, estava-se sendo sutil, romântico, delicado... Só sei que poderia ser por “um raro prazer”, ou ainda ter alguma coisa em comum com gente muito descolada. Saxofonistas, pintores, atores, entidades de bem com o mundo.
Na vida real, como todo mundo queria escalar montanhas e trepar um monte de mulheres, um cigarrinho com campari disfarçava a ignomínia do mundinho nosso de cada dia. E cá pra nós, a cor do campari não é demais? Com uma espiral de fumaça então... Comprávamos Minister para o pai, e Ella para a mãe. Crescemos assim, nossos ídolos, referências e desejos estavam intrinsecamente ligados a uma boa tragada.
O primeiro cigarro que botei na boca foi por ordem de meu pai. Era guri muito novo, cinco, seis anos talvez, e resolvi fumar uma bic depois do almoço na varanda da casa de praia. Meu avô, cérebro perdido em derrames, cochilava na espreguiçadeira perto de minha tia. Meu velho veio da sala viu a cena e resolveu me aplicar um corretivo. O homem me alcançou um cigarro, mandou sugar e depois engolir a fumaça. Quase botei os bofes para fora. Até meu avô, refém do entupimento de suas veias levantou as pálpebras exibindo o verdume dos olhos. Achei que nunca mais iria colocar uma coisa daquelas entre os lábios. Quem dera!
Quando as calças se desvencilharam das bainhas era hora de afirmar o buço e o inchaço do pau. Íamos em grupo ao cemitério para praticar a difícil arte de tragar e fazer a fumaça escoar pela boca e narinas com naturalidade. Juntávamos os vinténs e dávamos preferência ao filtro amarelo, essa era a cor dos homens. Chegávamos ao fim da tarde nauseados, o vômito escapando entre os dentes feito chafariz. Na maioria das vezes alcançávamos à bílis. Deitávamos sobre a pedra fria dos túmulos e tontos acompanhávamos o movimento das nuvens. Minha mãe sacou e tentou dar ultimado. Fez ameaças, jurou reprimenda. Tolice, o treino mais profícuo era longe da gurizada, sozinho, montado no ipê amarelo do barranco de casa com o Ella que furtava de sua bolsa. O afinco da busca deu resultado. Foi numa noite fria de um aniversário no descampado do rancho de festas do décimo nono batalhão que traguei como homem. Com a reverência dos meus e muito vinho barato, a noite indo alta e o sereno brilhando no campo, beijei a aniversariante. Pouco me importou se depois vomitei o garrafão de tinto caseiro que havia emborcado - havia me tornado um caçador. Que viessem as montanhas, os Hobiecats, as mulheres em seus longos vestidos e lábios em carne.
Passaram-se todos esses anos, bons anos! E do cemitério, e da noite no quartel aos dias de hoje, eu devo ter pitado hectares de fumo. E agora, concomitantemente a frase que caminha para o ponto eu continuo a tragar. Estico o braço e confiro quanto ainda me resta no maço. Preocupo-me se é o bastante entre as vírgulas que tenho que trabalhar melhor. Se é o suficiente, se chego a revisão, se a quantidade que me resta permitirá mastigar o texto até estar satisfeito.
Minhas ações atrelam-se ao meu vício. Penso em parar? Cavouco na busca da coragem, a mesma que foi necessária para primeira tragada, para abandonar o fumo? É claro que sim, todo viciado pensa. Mas só pensamos. Paralisa-nos o sofrimento físico da ausência, da perda do suposto charme, de não ver graça nas refeições. Nós fumamos, queremos parar, temos medo de não conseguir, não nos imaginamos sem o cigarro. Somos fumantes.
Salvar texto. Vou pitar na varanda.

5 comentários:

Jana disse...

Casei com um fumante. Desses que não têm culpa (apesar do que sugere o texto). Meu cabelo e minhas roupas cheiram a fumaça. Mas quer saber? OK. Tomo um bom banho e sigo feliz da vida.
Texto lindo.
Beijos.

Anônimo disse...

Quer saber eu fumava,acho que,para
desafiar meu pai(o velho era fogo).
Na frente dele,só depois de casada,
e mesmo assim,não na casa paterna.
Lembras quando fiz cirurgia da vesí-
cula?Foste comigo para o hospital e,
na noite anterior à cirurgia jogamos
cartas e fumamos,sentados na cama
hospitalar.Lembro que uma enfermeira
entrou no quarto e nos deu um pito.
Na volta para casa,pensei:fiquei
4 dias sem fumar,vou parar e deixei
"o vício".
Não vale dizer que eu não tragava.
Faz um esforço!!!
Esa

Anônimo disse...

Fumar não é bosta. Fumar é bom. O cigarro é um companheiro. Muitas vezes, um conselheiro. Muitas vezes uma outra coisa qualquer. Quantas outras quis conversar um problema com alguém, acendi um cigarro para começar a falar, tantas vezes quis dizer uns desaforos, dar uns tapas, mandar pra merda e um cigarro me livrou. Das inimizades, das hostilidades, das demissões. Precisamos de cigarros. Ele dá mais gosto ao vinho, mais sabor à comida, aproxima as pessoas, dá mais suportabilidade à vidinha que, muitas vezes, parece (e às vezes eh) de merda. Pena que traz a doença, a falta de ar, a garganta seca....E eu não suporto quem me pede para parar de fumar...Me dah vontade de dizer: por que nao tem fotos de gente morrendo do coração com as artérias entupidas nas embalagens de linguiças defumadas, bacon, etc? Por que não tem gente com o pé amputado nas embalagens de balas e bombons? Enfim...lembro-me de Clarice (inveterada fumante) Linspector "Clarice, você sempre exigiu muito da vida!, disse-lhe uma amiga. E ela retrucou: Mas ela também não pediu menos de mim!"

Anônimo disse...

Larga essa merda!!!!
A Nina não vai gostar de beijinho com cigarro.

Anônimo disse...

intiresno muito, obrigado