sábado, agosto 16

Lição de casa


Lição de casa sempre foi meu pesadelo. A escola de maneira geral não me agradava muito. Se me lembro bem, já na segunda série meu traseiro coçava na cadeira. Interessava-me mais o Kunta Kintê. Tinha um guri, Maximiliano - o repetente, que podia ficar acordado até tarde. Ele assistia o seriado na TV e depois me contava.
Com o passar dos anos a coisa foi piorando. A cada série que avançava aos trancos e muitos barrancos tudo ficava mais chato. À exceção de história, geografia e algumas professoras de pernas grossas, nada me alegrava. Para piorar ainda mais as coisas o sindicato no Rio Grande sempre teve muita força, e com razão, gritava alto por melhores salários e condições de trabalho. Minha própria mãe era uma rata de assembléias, grandes reuniões que decidiam pelo sim, ou pelo não da greve geral. Era ônibus de tudo quanto é lado. Vinham dos rincões mais longínquos, de cidadelas que nunca ouvira falar. Milhares de mulheres e alguns poucos homens, chimarrão em uma mão e a bandeira do sindicato na outra, todos querendo peleia. O tempo se abria e as tertúlias gritavam por movimento. O governador biônico, um gordinho com cara de sapo e óculos grossos de lentes guaraná, já não agüentava o tranco. Em Brasília, Figueiredo dava sinais que a tropa apeava do poder. Lá se iam três meses com as escolas fechadas. Os professores tinham ótimos motivos, o problema era o retorno às aulas. Eu já não era muito chegado, com os hiatos tinha que fazer um esforço descomunal para entrar nos eixos novamente. Acho que nunca entrei. Nem mesmo em fila para subir até a sala de aula. Negava-me, chegava atrasado, reclamava, olhava enviesado com cara de ruim. Se eles protestavam, eu também podia. Greve de fila, ponto. Na adolescência, para aliviar a tensão, já que não dava para matar aula todo dia e passar a manhã fumando River 90, inventamos um jogo para a hora do intervalo. Ocupávamos duas das oito canchas, naquela época colégio tinha pátio, pegávamos uma bola de basquete estourando de cheia e chutávamos a bicha com toda força possível uns contra os outros. Dezenas de nós, espalhados pelo campo de guerra desejando um moscão para sangrar e dar dor de cabeça a direção e ao SOE.
Mas eles também nos davam trabalho. Lembro bem de uma bedel de corredor. Mulher baixa e sem pescoço, redondamente acima do peso. As bochechinhas vermelhas lembravam as de um buldogue. Estava sempre no meu pé, a infeliz. Quando não era o uniforme, era meu atraso, meu cabelo, o pé na parede, a saída demorada ao banheiro. O importante era me chatear. Quando não estava em ronda ficava sentada numa cabine envidraçada tentando inutilmente segurar as pálpebras abertas, a dorminhoca remelenta. Sua languidez se fez prisão. De saco cheio, virei a guarita, e com a parede atravancando a porta só lhe restou gritar a exaustão. A humilhação foi tanta que a pequenina pediu transferência.
Mas para aprontar, bom mesmo eram os passeios. Uma semana antes do grande dia começávamos a instigar alguns patetas. Alardeávamos que sonrisal com coca-cola dava onda e coragem para beijar na boca. Era um tal de vomitar no ônibus bem chato de agüentar. A coisa ficou séria quando trocamos o sonrisal e o refrigerante por psicoativos como o bentil, e álcool. Aquelas bolas não só davam onda, como deixavam os caras apavorados. Chegamos a ter até um pouquinho de remorso vendo a baba, os olhos esbugalhados, os sujeitos petrificados de terror, mas não achamos justo quando os passeios foram banidos. Sim, éramos o diabo, ou se preferirem, o mau gênio do desagrado, a energia e vivacidade encarnando a desordem e o caos.
As patas ganharam as léguas, e com o andar da carruagem, mesmo que trôpego e descompassado, os butiás foram se ajeitando. Acabei descobrindo fórmulas melhores de personificar o vazio. O tempo, metido a brincalhão, me fez professor, e hoje tenho um puta medo que meus filhos façam a metade do que fiz. Ajudo na lição de casa de minha filha e tendo fazer disso um divertimento. Mas continuo tendo problemas com a escola. Outro dia não olhei um enunciado direito. Ela me dizia que não era daquele jeito. Respeitosa, a coitadinha foi por mim. Errou a questão. Ela tem sete anos e está na segunda série.
Ai, por que plagas navega o Kintê?

5 comentários:

Anônimo disse...

Certa vez acompanhei uma turma,em
que alguns alunos,misturaram coca-
cola com melhoral.Fomos parar no hos-
pital...Sabem quem os pais culparam?
Claro,eles,os professores que não
souberam cuidar dos seus anjinhos.
Parabéns,professores,pela fortaleza interior que tens ante desrespeitos
patronais ou ante indelicadezas atávi
cas de teus alunos.Ainda bem que tudo
passa e todos aprendem com seus erros.

Anônimo disse...

Que post lindo Marco. Por vc e pela Cora. Fico pensando às vezes: - como sobrevivemos à escola ? E melhor: como ela sobreviveu a nós? Enfim...a escola estah chata, sem humor, sem sabor.
Sérgio manda abraços. Ele adorou o blog mas não gostou muito do posto do homem tomando conta da casa...beijos pra ti, Janaína, Cora e Nina

Anônimo disse...

Dicionário do Rost: butiás (????)

Anônimo disse...

Belíssimo texto! Adorei o blog. Agora que descobri vou ler todos os dias.
Abraços, Paolla.

Anônimo disse...

Aprendi muito